“Mulher brava não cabe em casa”
inscrição que vale por si, em oposição à aviltante
“Do homem a praça, da mulher a casa”
e que tinha, para mim, um alcance especial, por ser a chave capaz de libertar as emoções excruciantes que me perseguiram, anos a fio, por causa da visão primeva de uma mulher encafuada na lareira, presa a tachos e panelas, em benefício da propaganda de uma ideologia totalitária que degradava as mulheres em fadas do lar, e aqueloutra resultante da humilhação de milhares de mulheres aferrolhadas em casa por maridos ciumentos e a quem só era consentido assomar à janela, com os braços apoiados numa almofada assente no parapeito.
.jpg)
Já fui jornalista e agora sou escritor
A tempo inteiro.
há quem, depreciativamente, me apelide de escritor-fantasma por achar que redijo textos por atacado e em nome de outrem
Não me amesquinham.
ponho a minha seriedade, lisura, competência, erudição, memória e criatividade ao serviço da escrita
(em forma literária)
das lides e das histórias que me contam e, apesar de trabalhar por encomenda, tenho liberdade para recusar aquilo de que não gosto e para assinar toda a prosa que componho, recebendo os créditos e suportando os descréditos dessa autoria
Este foi um caso bizarro!
iniciámos os nossos contactos de uma forma mutuamente arrogante, desrespeitosa, carrancuda e, para o bem e o mal, os papéis começaram a enlaçar-se no próprio dia em que nos conhecemos
Nem sei bem como explicar…
sabia ter sido contratado por uma editora para escrever um romance tendo como base a história de vida de uma octogenária, a senhora D. Aurora – asserção seriamente abalada, logo no nosso primeiro encontro, perante a sua advertência indignada
− Qual romance! Nos tempos que correm as fantasias são para os amantes de telenovelas. Se quer aceitar a incumbência, deixe-se estereótipos.
e a minha réplica impertinente
− Fique ciente de que não fui contratado para escrever a sua biografia.
andámos quase três anos a conversar e a desconversar, contámos muitas histórias de vida, partilhámos memórias, intimidades, gostos, desgostos e até segredos; zangámo-nos, fizemos pazes, emocionámo-nos juntos e, acima de tudo, jurámos respeitar-nos
O editor acompanhou o desenrolar dos trabalhos...
ouvia os fonogramas, lia os esquissos dos textos que eu ia escrevendo, comentava as anotações e apontamentos, criticava excessos, apontava falhas e recomendava alterações; daí as suas apostilhas e as subsequentes réplicas.
A senhora D. Aurora morreu no passado dia 27 de julho de 2018
(fazia nesse dia 88 anos)
Ajudei-a a morrer.
o livro que me competia contratualmente escrever nunca foi terminado, mas não ficaria de bem comigo se não desse à estampa, por minha conta e risco, os registos de tudo o que entre nós se passou durante a sua preparação
Sinto a sua falta.
mantive intacto o introito, que fez questão de quase ditar no primeiro dia de trabalho, assim como o registo em discurso direto de muitas das nossas conversas; contextualizei os acontecimentos, selecionei e ordenei os episódios e tentei tornar compreensível o tumulto de algumas discussões e a confusão resultante de uma oralidade emocionada
Leitores e leitoras…
aqui ficam as transcrições das falas, as notas de rodapé, as anotações, os apontamentos, as intervenções do editor, o registo de conversas telefónicas, alguns dos textos finais que fui escrevendo, os desabafos e os apartes
aqui fica o registo de uma peregrinação a locais de passagem e desconforto, pontuado por saltos e sobressaltos, recusas e aceitações, desconfianças e atrevimentos, num périplo capaz de desvendar e decifrar enigmas, bloqueados nos recônditos de memórias afetivas.
Perante a passividade cúmplice dos responsáveis políticos e académicos e para não criar mais perturbações, optei por respeitar o acordo ortográfico; o resultado é este livro que aqui deixo ao vosso escrutínio crítico, para que, como diria a senhora D. Aurora
Desfrutem.