O mundo foi sempre fonte de espanto e foz de estranheza para o Humano.
A primeira forma que se encontrou de responder ao espanto e à estranheza foi religiosa. O Humano atribuiu ao sobre-humano a causa, a razão e o desígnio de tudo o que encontrava à sua volta e que, se entregue si, não podia nem sabia dar sentido.

Esta explicação mitológica da vida e do mundo viria por razões de ordem tecnológica, económica e cultural a perder eficácia.
Nesse súbito vazio divino foi-se instalando a emergente racionalidade filosófica e científica. A vida e o mundo tinham agora uma explicação estrictamente humana, explicação essa que era dada pelo entendimento humano e que se pretendia objectiva e provável.
Depois da primeira explicação Religiosa mas ainda antes desta recente explicação Filosófica e Científica, digo assim para paradoxalmente simplificar, da vida houve a explicação feita pela Poesia.
Referindo-me à Grécia noutra simplificação falo dos Aedos, os primeiros poetas que também eram músicos e cantores. Para estes, como para os outros Gregos, a Poesia tinha origem na inspiração divina, era um sopro inflamado dos espíritos.
A Poesia era a Verdade e, era a Verdade, porque era a Memória que negava o Esquecimento.
O Esquecimento «Léthe» é silêncio, escuridão. A Poesia é «Alétheia», a Verdade brilho e fulgor.
Neste ponto da introdução, passo da circunstância professoral e pretendidamente objectiva, à do orador radicalmente subjectivista.
Tenho para mim, enquanto leitor e autor, que a Poesia é um olhar, mais completo, um ver.
Tomemos uma situação concreta para tornar mais fácil a minha explicação. Chove.
Peça-se a um cientista a um sacerdote e a um poeta que, na sua condição específica de saber, nos dêem explicações sobre o que sucede.
Das três explicações apresentadas o poeta é o que vai afirmar uma subjectividade extrema. O “eu” é o ponto de perspectiva tomado por inteiro e abandonado ou resolvido.
Um poema é o dizer do mundo e da vida feito por um ser-humano diferenciado e identificado.
Um poema é um pedido sentido e insilenciável.
Um poema é um lugar de encontro combinado entre o poeta e o leitor/ouvinte
Como quem diz:
- Vamos encontrar-nos no meu poema, que eu quero saber se tu vês o mundo e a vida como eu vejo.
Posto isto falemos dos poemas / lugares de encontro que Margarida Mântua connosco quer combinar.
A leitura que a seguir apresento é, tal como o acto de escrita poético, radicalmente subjectivo. Tal como a Poeta, também eu pretendo isso de uma forma deliberada. O que vos apresento é a minha leitura diferenciada e identificada. É uma resposta agradada ao veemente pedido de conversa que o poema nos faz.
Na Poesia de Margarida Mântua, nos recursos léxicos, nas significações imagéticas e na descrição emocional há rigor, sobriedade, economia e diversidade. Nada é excessivo. Não há uma palavra a mais, nenhuma foi desperdiçada ou se tornou inútil.
Em « Há um acordo secreto»
(…) toda a matéria sólida
plena e perfeita
mergulhando na sua ancestral
natureza líquida.
Em «Antinomias»
(…)Singela
a rosa rescende
na sua filigrana
de aroma
desdobrando
os tecidos do real
Em« Matéria da Poesia»
Palavras
correndo página afora
em cascata de sons
como estrelas cadentes
em fulguração instantânea
a poesia eleva-se a prumo (…)
Seria infindável a enumeração dos elementos significativos e estruturantes da poesia de Margarida Mântua. O prazer que primeiro retiro da leitura, e depois da análise destes poemas presentes, pede-me que me alongue e leve à exaustão este exercício subjectivo, e por isso inconsequente, da explicação da poesia.
Não o farei. Quero que este gosto que encontrei na leitura e na descoberta da possível significação de tão equilibrados e transparentes versos, também os meus leitores a possam fazer.
Assim sendo vou falar de 4 desses elementos: o Tempo, a Natureza, a Luz e o Poema
O Tempo tratado ora como insinuação, ora como imposição é a fonte de um espanto original; o retorno da eternidade que cíclico torna indistinta a sequência temporal. O tempo é a testemunha eterna da sua própria efemeridade
Em «Liturgia»
(…) Ausência funda
Presença mínima
Também somos o que perdemos…
o infinito desdobrando-se para trás
sem retorno
Em «A Polpa dos Dias»
A polpa dos dias
por dentro da polpa dos dedos
a carícia
o suave aroma do jasmim
na memória
de outros dias poisados em contemplação
Em «Celebração»
(…) a poesia regressa intacta
ao tempo dos homens
rasgando o negro da noite
poalha de estrelas antiquíssimas
A Natureza
Os elementos naturais passam por metamorfoses poéticas, interiorizando-se em sentimentos e perplexidades. Há um vai-vem constante, entre a Natureza brevemente insignificada e a intimidade psicológica e existencial que logo lhe dá significado.
Em «Uma Janela Aberta à Luz»
(…) como uma maçã
esférica, vermelho-rubra de luz
de aroma, próximo à água da boca
rente à respiração nua do coração
Em «Peneda»
No coração da montanha
A luz navega (…)
A montanha recolhe-se
Na sua solidão altiva
Violeta melodia de harpas de vento
Em «Do Curso do Rio»
(…)Mas
Os nossos passos mergulham
Profusamente no leito do rio!
Onde a alegria da água?
Onde o abraço com a ondulação?
(…)
A Luz é uma referência significativa recorrente na Poesia de Margarida Mântua. A palavra, quando investida de intenção poética, torna-se Sabedoria, a Verdade já referida na introdução.
Seja pela incandescência pela florescência, seja permanente ou intermitente, a luz em platonismo alegórico afasta a ignorância e o esquecimento.
O poema faz-se farol a avisar-nos do perigo de naufrágio se descuidarmos as palavras, afinal navios, que derivam nos mares da ausência.
Em «A Luz da Manhã»
(…) luz
pausada
serena
alheia aos espelhos
manhã eterna
lavada
inicial
Em «Por detrás do Palco»
Muros opacos dos significados
como preservar
a florescência das palavras?
como beber
essa luz indizível
que se desprende no rasto
do poema?
Em «Rente às Fontes»
(…) o uno e o múltiplo
desocultam a sua luz
o dia e a noite enlaçados
poesia liberta
da rede do pensar
obscura e radiosa (..)
Termino estes salpicos interpretativos condicionalmente subjectivos, com a referência a um dos recursos mais elaborados e reflectidos por Margarida Mântua: o Poema ele próprio, e na sua dualidade significante e significada.
O poema infinito, que escrito continuamente se reescreve, quase que chega a «dizer» serem dispensáveis quer o poeta, quer o leitor, que ele sozinho dará bem conta do recado de trazer o sonho pela mão das palavras.
A matéria do poema que existe antes do poema, espera pacientemente, ser por aquele vestida de formalidade.
Apesar de garantir que há poemas que não estão escritos porque não é preciso não, não faz isso e, chamando de novo o poeta e o ouvinte leitor, que parecia ter dispensado, faz-se ponte entre eles.
Em «Por detrás do Palco»
(…) o poema deseja a forma
revolve a casca cinzenta das palavras
à procura
divagando
saltitando
sobre as cristalizações de sentido
rasgando janelas nos momentos (…)
Em «Utopia»
e o poeta em ansiosa laboração…. esperando o regresso do seu poema
à escrita, rente à terra,
o coração desfolhado entre infinitos espaços,
esta secreta engrenagem da gestação,
de que prado original emergem as hastes do poema?
a sombra vulto do poeta
desaparecida da paisagem
Em «Face a Face»
Palavra-cisne
deslizando transparentemente
atravessando a noite
chegas
regressada de que espaço exterior
longínquo…?
palavra-olhar intenso
interrogas-me
rompendo o tecido opaco do real
palavra-nuvem
desvanecendo-se
E ainda
fico presa ao chão
das letras
esse sopro de infinito,
que outra voz
o trouxe, o libertou, o incendiou…?
palavra-resposta
palavra-pergunta
o que emerge deste nosso face-a-face…?
Em «Apesar de Babel»
Poeta sem voz
sonhando o poema único
o POEMA
que sustém a linha do horizonte
…ainda sobra céu azul na terra dos homens?
no coração do mundo
o poema lateja…
São estes os poucos passos em que os acompanho até à entrada do labirinto poético e existencial, desenhado a palavras por Margarida Mântua. Nem o caminho nem a saída desse labirinto são únicos, não são exclusivos e por isso não vão levar a mal que eu vos diga:
- A partir daqui vão sozinhos, estão por vossa conta. Se ficarem encadeados com a luz da Verdade que há nestes versos será intenção vossa.
Eu só os fui buscar ao fundo da caverna.
Lisboa, 1 de Fevereiro 2019
Joaquim Marques