A VIAGEM à EUROPA de D. João V - e outros temas do seu tempo
Este volume integra cinco estudos sobre temas da primeira metade do extenso reinado de D. João V, que durou de 1707 a 1750. Os assuntos são diversos, como diversos são os protagonistas centrais – mas todos revelam factos ou documentos, directa ou indirectamente ligados à Casa Real, até agora mal conhecidos ou mesmo desconhecidos do público.

A VIAGEM DE D. JOÃO V – Era sabida a intenção de D. João V de efectuar uma jornada pela Europa, com uma comitiva monumental (que poderia eventualmente incluir um dos infantes seus irmãos), em geral apresentada como uma peregrinação ao santuário do Loreto, em Itália. O assunto foi falado no seu tempo, na corte e nas principais chancelarias europeias, e nos nossos dias justificou já algumas publicações, por vezes especulativas. Mas é possível confirmar agora as reais intenções do monarca (ainda jovem, estava-se em 1715), graças a um documento original do conde de Tarouca que repousou longamente em silêncio na Biblioteca Pública de Évora.
Trata-se da resposta daquele que era então o nosso embaixador na Haia a um questionário que lhe foi endereçado por ordem real sobre o percurso a seguir por D. João V na pretensa peregrinação – que se percebe, pelo encadeado das questões, visar objectivos bem diferentes... e nem sequer passar pelo Loreto. O destino da viagem era claramente Roma, onde o rei contava chegar na quaresma de 1717. Se o peregrino pensava encabeçar pessoalmente a grande embaixada ao Papa Clemente XI, que o marquês de Fontes vinha encenando desde 1712, seria já tarde demais. O seu enviado extraordinário viria a realizar o célebre desfile de coches dourados em direcção ao Vaticano em 8 de Julho de 1716 – precisamente quando o rei cedeu à evidência e desistiu do seu projecto.
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A INFÂNCIA DO INFANTE D. MANUEL – O irmão mais novo de D. João V esteve no centro do maior escândalo do reinado do Magnânimo: aos 18 anos, em 1715, fugiu do paço e do reino, resistindo ostensivamente a todas as ordens do rei para regressar a casa. O seu exílio durou quase duas décadas, em que cirandou por toda a Europa, entre cenas de audácia no império austro-húngaro, onde lutou contra os turcos sob o comando do príncipe Eugénio de Sabóia (ver adiante “Notícias do cerco de Belgrado”), e episódios caricatos como aquele que protagonizou em Moscovo (ver “Em busca de um casamento na Rússia”).
Revelamos aqui, em síntese, o primeiro capítulo da biografia do infante rebelde que temos em preparação: o que foram os seus primeiros anos de vida na corte, até à fuga que marcaria toda a sua existência. Aparentemente, nada fazia adivinhar as peripécias que se seguiriam...
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NOTÍCIAS DO CERCO DE BELGRADO – Por essa altura, graves acontecimentos ocorriam no outro lado da Europa. Os turcos violavam abertamente o tratado de Carlovicz, ameaçavam de novo Viena e ocupavam posições venezianas no Adriático, trazendo o Islão quase às fronteiras dos Estados papais. A Europa cristã mobilizou-se e milhares de voluntários das elites aristocráticas e militares acorreram à Áustria e à Hungria para se juntarem ao exército imperial austríaco. Sob o comando do príncipe Eugénio de Sabóia, a progressão otomana foi travada em Petrovaradin (que hoje faz parte da cidade sérvia de Novi Sad) a 5 de Agosto, e dois meses depois em Temeswar (hoje Timişoara, na Roménia), a 120 quilómetros de distância em linha recta. Em ambas as batalhas participou um contingente português, com destaque para o infante D. Manuel, que fugira da corte no ano anterior e até ficou levemente ferido nas contendas.
Restava por resolver o principal problema: a praça-forte de Belgrado, de difícil expugnação, onde os turcos reuniam um formidável exército. No Verão seguinte (1717) os cristãos voltaram à carga, montando um cerco que durou dois meses. O príncipe Eugénio atacou finalmente em 16 de Agosto, levando de vencida os defensores da praça, após longas horas de combates indecisos e de verdadeiras mortandades de parte a parte. Belgrado rendeu-se pouco depois, deixando aos vencedores um espólio com poucos precedentes nas crónicas castrenses.
Participante e testemunha de tudo isto, um jovem militar português integrante da comitiva de D. Manuel não perdeu tempo e, duas horas depois do final dos combates, estava na sua tenda a descrever os acontecimentos, em cartas que enviou ao pai, um literato de Lisboa. Este recebeu-as um mês e meio depois, tendo a ideia feliz de as copiar e reexpedir. Para quem, não há certezas – mas delas teve seguramente conhecimento o redactor da “Gazeta de Lisboa”, José Freire Montarroio Mascarenhas, que utilizou várias das suas informações num acuradíssimo volume sobre a campanha do príncipe Eugénio que publicou em tempo recorde, ainda no decurso de 1717.
As próprias cartas, por si sós, tiveram também seguramente algum êxito, como comprova o facto de termos encontrado duas cópias manuscritas distintas, uma na Biblioteca da Ajuda e a outra na British Library em Londres, com ligeiras diferenças, que sintetizamos numa versão única em português mais actual.
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EM BUSCA DE UM CASAMENTO NA RÚSSIA – Depois das campanhas militares de 1716 e 1717 contra os turcos nos Balcãs, o infante D. Manuel prosseguiu a sua errância pela Europa, a expensas do seu primo imperador austríaco e da corte de Madrid, num ciclo declinante que só terminaria em 1734, quando o descrédito generalizado e uma falência desonrosa em Viena o forçaram a regressar a penates.
Quatro anos antes, já em fase de grandes dificuldades mas ainda esperançado numa solução decorosa para o seu futuro (que só parecia antever num casamento que lhe desse estatuto e proveito), fez a mais insólita tentativa da sua vasta carreira de Romeu dos paços europeus: foi tentar a mão de uma das duas potenciais herdeiras da coroa de todas as Rússias, com que lhe acenaram de Moscovo.
Em 1730, as viagens de D. Manuel já tinham pouco eco nas gazetas da época, mas D. João V esteve sempre a par dos menores movimentos do irmão na longínqua Rússia, graças à sua experiente rede de diplomatas e informadores.
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A CONSPIRAÇÃO DE D. FRANCISCO – O monarca soube também, por certo, dos intentos (potencialmente bem mais perigosos para a coroa) do seu irmão secundogénito, o infante D. Francisco, que na Primavera de 1726 tentou aliciar o rei da Grã-Bretanha para uma obscura conspiração. Resumidamente, Jorge I prometia-lhe uma filha em casamento e ajudava-o a tornar-se rei, derrubando D. João V – isto numa altura em que tomava forma a “troca das princesas” entre Lisboa e Madrid, que alguns receavam pudesse abrir o caminho a uma nova união ibérica.
As provas da tentativa de conspiração encontram-se, preto no branco, na correspondência diplomática britânica guardada nos National Archives de Kew Gardens (Londres) e afastam de vez as dúvidas que pairaram durante três séculos sobre a intenção de D. Francisco de se tornar rei no lugar do irmão.
Paulo Figueira