Estes textos foram escritos durante o período que mediou entre 10 de Março e 2 de Maio de 2020.
Longe de mim a pretensão de explicar os conteúdos desta minha modesta produção poética: ela há-de ser o que cada qual nela encontrar e só nessa medida valerá.
Assim, a presente nota inicial procura apenas descrever de que forma estes poemas vieram à superfície.
Trata-se de poemas de circunstância, objectarão, talvez, alguns, em jeito de crítica. Mas poderá um poeta sê-lo, fora da sua circunstância?
Julgo que toda a poesia, tal como qualquer outra forma de meditação implica, de algum modo, confinamento e expansão.
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Estes poemas, que são como que uma espécie de diário de quarentena, durante o período que se atravessa, não fogem a essa regra, já que, na verdade, não passam do produto da vivência concentracionária, muito especial, decorrente do surto da epidemia Covid-19.
A radiação fóssil traz-nos os mais longínquos ecos do passado.
Do mesmo modo, a pandemia, através deste minúsculo vírus, remete-nos para algo vindo do começo do nosso tempo mundanal, quando a Terra não passava de um caldo proteico onde tudo se espreguiçava ainda.
Nos versos, agora apresentados ao leitor, misturam-se as minhas vivências próprias com as surpreendidas nos media, em familiares, amigos e conhecidos, com quem fui podendo contactar, ao longo da quarentena.
O que de mais notório então constatei, foi o surgimento de uma enorme onda de solidariedade afectuosa: as pessoas passaram-se a interessar mais pelo semelhante, procurando socorrê-lo e ajudá-lo, a ponto de, por vezes, o fazerem com risco da sua própria vida.
Não menos comovente foi a forma como quase todos procuraram retomar contactos há muito interrompidos ultrapassando esquecimentos e questiúnculas perdidas no tempo.
E olharam-se, também, de modo novo, árvores e bichos e foi-se comentando que o ar estava mais puro, e a tranquilidade era mais visível e os animais mais afoitos.
Era, talvez, a Natureza a dar-nos um sinal: como que a querer agradecer-nos por lhe termos dado tréguas e deixado em paz...
Pensaram muitos então que, na verdade, já tínhamos ido longe demais e as reacções foram diversas: os crentes rezaram para que Deus os não castigasse mais e os ateus muito assertivos na sua “verdade”, limitavam-se a achar, meio cépticos, meio optimistas, que haveria que se esperar para ver. Mas todos convergiram na ideia de que nada ficaria como era dantes e lançaram a sua maldição pessoal sobre o vírus.
Por mim, penso que cada página da História deve ser lida como uma lição, já que o acaso é frouxa explicação daquilo que não sabemos, ao certo, o que seja.
Assim, recordo, na circunstância, o que alguém já antes disse: quando as coisas estão a correr mal, ainda podem vir a ficar muito piores.
Que um ínfimo vírus, que só os microscópios mais poderosos conseguem lobrigar, seja dotado do poder de paralisar a Terra inteira, devia deveras levar-nos a considerar, bem seriamente, a insignificância do nosso tão gabado poder humano e alardeado direito ao domínio sobre o mundo. Que exército seria capaz de levar a cabo uma tal façanha?
O despretencioso conjunto destes textos foi escrito em jeito de parábola edificante, pois essa me pareceu a melhor forma de abordar aquilo que surpreendi na reacção das pessoas perante o percurso aterrorizante do Covid-19, e ao serem confrontadas com ele.
Afinal, o vírus, que nos atormenta, ao vir pôr a nú toda a nossa fragilidade ontológica, leva-nos questionar também, a nível ético e comportamental, a impiedade e estupidez inacreditáveis de que o homem tem dado mostras, ao longo da História, enquanto super-predador implacável que nada poupa.
Este vírus é paradoxal no seu comportamento e nas suas escolhas:
– é mais severo para quem tem menos esperança de vida mas poupa, em geral, as crianças;
– obriga-nos ao confinamento mas não molesta os animais que, na sua mansidão, se aproximam das cidades, nem sequer as próprias plantas;
– obriga as pessoas a serem mais dóceis e solidárias, e a esquecerem, ao menos momentaneamente, a ganância do lucro em alta escala;
– torna o homem mais disponível para inventar as soluções mais simples e fá-lo redescobrir o valor dos afectos, do lar e da própria Natureza, agora mais despoluída e aliviada da destruição humana.
Comentar as grandes epidemias parece implicar fazê-lo
em perspectiva Yin-Yang, ou seja, a preto e branco ou claro-securo, pois todo negativo contém positivo e vice-versa.
Assim, procurei apresentar os pontos de vista do homem, enquanto vítima da pandemia mas sem deixar de apresentar os do próprio Covid-19, enquanto suposto ser pensante, assim vestindo eu a toga para assumir o papel de “advogado do diabo”.
Não pode ser mais esquecido que a “normalidade”, em que vivíamos antes, já era, em si, de facto, tóxica e mortal.
Como observava, Herbert Marcuse, em meados do século passado, “a definição do nível de vida através dos automóveis, dos canais de televisão, dos aviões e dos tractores, é a do príncipio do próprio rendimento.”
Fomos nós que abrimos a porta do – para utilizar uma expressão de Rimbaud – Pavilhão da Carne Sangrenta: não só nos destruímos mutuamente e a Natureza, como abusamos da generalidade dos animais, entre os quais aqueles em que o Covid-19, há já muitos milhões de anos, vivia mansamente e sem dano para os seus hospedeiros. Tal abuso tem dado causa ao surgimento de sucessivos surtos epidémicos, a nível mundial, qual deles o mais letal.
A maior parte dos poderosos, de todo, só anseiam agora que “tudo” volte a ficar como era, quer dizer, desejam a restauração global do economicismo com as sociedades prisioneiras das engrenagens malsãs do extractivismo, da produção e do consumo.
E se se vê, com justa aprovação, os actuais dirigentes
muito ocupados com o combate à epidemia e com a reposição da economia, vê-se, com preocupação, que nada está a ser dito em relação a novos planos concernentes à protecção do ambiente e à ecologia que são, na verdade, os grandes instrumentos de salvação do planeta e a porta de introdução da ética na prática governativa.
Desta pausa a que somos forçados saem dois caminhos: um dá para o abismo e outro para a remissão.
Se a janela de futuro agora entreaberta se encerrar, de novo, transformando-se numa oportunidade perdida, o nosso sacrifício terá sido, totalmente em vão e há-de vir um qualquer vírus, incluindo o da guerra, que, de todo, acabará por nos apagar da face da Terra.
Mas eu sou dos que alimentam ainda a secreta esperança de que a vida dos humanos não voltará jamais ao que era dantes... custe o que custar.
ADALBERTO ALVES