Com este trabalho, pretendo dar um contributo para o vasto puzzle que constitui a vida aventurosa do Infante D. Manuel de Bragança. Após um longo hiato desde as obras de Ernesto Soares (apenas interrompido por alguns artigos pontuais publicados nas décadas de 50 e 60), eis que, desde há alguns anos, parece haver um certo ganho de interesse pelo personagem. Creio, no entanto, fazer falta um primeiro trabalho de síntese, complementada por dados provenientes de documentos (em especial, correspondência) existentes em arquivos estrangeiros, que permitem obter uma perspetiva mais focada na intimidade afetiva e na vertente artística e cultural – tão importante no contexto europeu da época – do que aquela que ressalta da documentação dos arquivos portugueses, já bastante analisada, que incide essencialmente sobre aquilo que, em Portugal, se considerava a rebeldia de um príncipe em fuga e os seus caprichos e extravagâncias (nomeadamente despesas e dívidas, sendo que estas não eram exclusivas do personagem, mas comuns na alta sociedade da época). Uma análise baseada unicamente nessas fontes acarreta uma visão necessariamente distorcida – senão caricatural –, que oculta a riqueza humana do personagem, a sua sensibilidade e o seu cosmopolitismo.
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Definir os traços essenciais da personalidade do Infante não é tarefa fácil, tanto mais que apenas dispomos de algumas peças do puzzle. Durante muito tempo, foi apresentado como um aventureiro um pouco irrefletido e perdulário. Embora não seja de excluir que sofresse de uma patologia do tipo borderline ou mesmo bipolar, expressa na alternância entre períodos de grande atividade e fases de retiro, bem como no seu conhecido caráter pródigo, a abordagem da sua personalidade nessa perspetiva será, sem dúvida, redutora. É certo que a sua vida poderia dar um filme com grande êxito de bilheteira. Mas, entre o homem sonhador e ingénuo, o militar destemido das campanhas de 1716 e o diplomata na sombra, cujo papel algumas vezes (e talvez malgré lui) terá desempenhado, adivinha-se um perfil que o torna um personagem particularmente interessante. Apesar das suas qualidades, reconhecidas por diplomatas e aristocratas europeus (de D. Luís da Cunha ao imperador Carlos VI), os reveses da política, aliados ao seu caráter hesitante e à oposição permanente do irmão, impediram que se tornasse a figura de destaque a nível europeu – ou o valoroso estadista, militar ou diplomata – a que parecia estar destinado na sua juventude.
Uma análise grafológica de várias das cartas a que tive acesso, apresentada em anexo, salienta, nomeadamente, a imaturidade do personagem, que se traduz nalguma ausência de controlo da sensualidade e da emocionalidade. Revela, ainda, um certo receio do futuro, de se sentir privado de bens materiais, manifestando tendência a não assumir decisões sozinho. Contrariamente, por exemplo, ao seu companheiro de fuga Manuel Teles da Silva, o Infante não teria personalidade de estadista; em geral, a sua atitude perante os acontecimentos políticos era mais de espetador do que de ator. Por isso, dificilmente poderia assumir o cargo de rei de uma entidade tão complexa como a Polónia, numa conjuntura altamente conturbada. Mas muitos outros personagens da sua época desprovidos de talento político viram-se chamados a desempenhar (pelo menos pro forma) altos cargos, como, por exemplo, Filipe V de Espanha, educado para ser uma figura de segundo plano na corte francesa e cuja instabilidade psicológica (que o seu sucessor e a neta rainha de Portugal viriam a herdar) o arredou praticamente – por períodos mais ou menos longos – do exercício do poder, que ficou nas mãos de Isabel Farnésio e de uma sólida elite burocrática desde há muito bem rodada nos meandros da governação de um dos mais vastos impérios da História.
Voluntariamente ou nem por isso, o Infante, na sua longa vida, esteve quase sempre em contacto com as mais altas esferas da diplomacia e da política europeia. Mesmo depois de assentar definitivamente, e muito a contragosto, no seu «exílio» – ou «desterro» – português, parece ter mantido uma vasta rede de conhecimentos e (a dar crédito à carta da pág. Xx) terá recebido hóspedes ilustres incógnitos. Poderá mesmo ter sido mediador secreto em várias circunstâncias – por exemplo, entre Filipe V e a viúva de Carlos II. Conhecedor da elite cultural e artística de uma Europa em rápida evolução, sentir-se-ia forçosamente deslocado num país conservador e – até pelo peso da Igreja e da Inquisição – avesso às novas mentalidades que estavam a transformar rápida e profundamente a Europa.
Não se trata, pois, de uma contribuição de natureza académica, mas de um ensaio de âmbito limitado – e não de uma biografia aprofundada –, que procura, nomeadamente, situar o personagem no contexto histórico, cultural e artístico da Europa do seu tempo. Por outro lado, focaliza-se no período em que o Infante esteve ausente de Portugal, que é também, sem dúvida, o mais interessante da sua vida, para o qual dispomos de um grande volume de dados, embora dispersos. Além da já referida documentação proveniente de arquivos de vários países, baseeime com frequência em fontes que, embora de acesso fácil (nomeadamente através da Internet), nem por isso deixam de constituir fontes informativas importantes. Destas, destaco as gazetas europeias (Mercure de France, Suite de la Clef, Gazette d’Amsterdam, Gazette de Berne, Gazzetta di Mantova, Wiener Zeitung, Gaceta de Madrid e – claro está – Gazeta de Lisboa), nas quais o Infante é referido com alguma frequência, o que demonstra a sua popularidade «mediática». Enfim, embora tenha procurado cingirme ao máximo aos factos patentes nas fontes utilizadas (ou que delas transparecem), haverá passagens em que poderei ter feito extrapolações ou tecido conjeturas que a eventual análise de outros documentos que venham a ser descobertos permitirá confirmar ou infirmar.
Como, aliás, era hábito na corte portuguesa da época, todos os papéis de D. Manuel parecem ter sido destruídos após a sua morte. Assim, as cartas a que tive acesso, embora em número reduzido, revestem-se de um interesse particular, pois permitem imiscuir-nos um pouco na sua intimidade e, talvez, contrariar alguns mitos persistentes.
Faço votos, sobretudo, para que este trabalho sirva de «aperitivo» e ponto de partida para outros de maior envergadura, e que futuras investigações em arquivos de vários países (tendo em conta que, por vezes, quanto mais longe se está do «epicentro» dos acontecimentos, maior a liberdade para falar deles) forneçam material que permita esclarecer alguns pontos particularmente nebulosos e levantar o véu sobre alguns mistérios que, sem ele, pairarão eternamente em torno deste interessante personagem, que foi o português mais conhecido e, porventura, mais apreciado na Europa na primeira metade do séc. XVIII, devolvendo-lhe, de certo modo, a sua justa dignidade. Aliás, o prestígio que denota a deferência com que é tratado pelas cortes e diplomacia europeias contrasta profunda e estranhamente com a forma como é tratado e considerado no universo português. Este contraste é mesmo um dos aspetos mais marcantes que ressaltam da documentação disponível – dando, por vezes, a sensação de que não se está a falar do mesmo personagem... Creio ser atribuível a um conjunto de malentendidos decorrentes do grande fosso que já então se observava entre as cortes estrangeiras e portuguesa, sendo que esta – um pouco como a espanhola antes da subida ao poder dos Bourbons – pouco mudara desde o séc. XVII.