Como é do domínio comum, além da poesia e do ensaio, Adalberto Alves (A.A.) tem uma carreira vasta e internacionalmente reconhecida, dedicada à tradução e ao estudo de uma tradição fortíssima, como a da poesia árabe, sobretudo no que respeita ao Período dos Reinos de Taifas do Alandalus, durante os séculos XI/XII.
É um profundo conhecedor desse legado, um solo comum que serviu de matriz à nossa cultura universalista e mediterrânica, cruzando fontes como a árabe, a do judaísmo e a do cristianismo.
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As excelentes traduções de Adalberto Alves, da poesia de autores como al-Mu'tamid e Ibn 'Ammâr, foram marcantes na década de 90 e contribuíram para o conhecimento e divulgação da poesia e da cultura dessa época esplendorosa, sobre a qual muito pouco existia em Portugal, contrastando com a quantidade de informação e de bibliografia proveniente da vizinha Espanha.
Para quem não conheça a Poesia Árabe, em particular a destes dois poetas, é preciso frisar que ela reflecte uma pujança da linguagem e das formas literárias de uma cultura erudita, atravessada pelo hedonismo e pelo erotismo, que conheceu o seu clímax durante os reinados das Taifas. Tradição que se repercutiu nos pólos universitários fundados nessa época, em Espanha, sobretudo em Sevilha e Córdova, mas também em Silves, considerada, à época, a capital do Algarve.
Talvez seja esse o berço mais feliz que um poeta pode encontrar, no sentido em que oferece um manancial de formas e temas poéticos de primeira água, mas onde viceja também uma liberdade criativa da linguagem verdadeiramente incomparável em toda a Europa.
Não apenas ressalto em A.A. esses domínio das formas poéticas, dos temas, como ainda da musicalidade da linguagem que o convívio com a poesia árabe lhe trouxe.
E é essa afinidade, essa quase intimidade que se configura como um dos principais veios da sua obra, marcada por um fôlego lírico que escasseia hoje na nossa poesia, mais preocupada (?) com uma contenção formalista (e formalizante) que lhe retira, por vezes, a voltagem lírica, secando assim a poesia.
Encontramos aqui e mais uma vez, um sujeito poético cujo principal esteio é a sua voz caudalosa e inspirada. Por sua vez, ela não fica a dever nada ao conhecimento das formas poéticas, isto é, da métrica e do ritmo, das figuras de estilo que são por ele profusamente usadas. Uma voz que anuncia ao que vem, desde o primeiro poema, e que se move em crescendo, procurando, através do mergulho incessante na linguagem, mais do que um caminho, um caminhar para fora de si, em movimento de ascensão.
A voz lírica espreita a partir do primeiro poema, evidenciando uma vontade de desmesura e embriaguez, assim nos remetendo para o tema do desejo, embora este não seja de ordem carnal e sim de uma outra, espiritual, ou melhor, mística, infinita e insaciável.
Não fugiremos ao rigor se dissermos que, na sua obra, o misticismo é um dos filões mais ricos da sua poesia. Este deve-se ao profundo (e raríssimo) conhecimento que o autor possui, não apenas do pensamento do Islão, mas também da sua relação do pensamento persa e sufi que respira ( ainda que A.A. não seja tão conhecedor da língua farsi), de forma natural e sem desejo de se evidenciar.
Existe hoje na Poesia Portuguesa contemporânea uma rejeição (poderei dizê-lo assim ?) face àquele que foi um dos filões mais ricos da nossa poética e essa é uma das razões que também contribuem para um certo obscurecimento de alguns dos nossos melhores poetas.
Refiro-me à poesia que que dialoga com a tradição filosófica e metafísica. Para além de Ramos Rosa e Herberto Helder, gosto de relembrar as vozes de José Agostinho Baptista ou a de Carlos Poças Falcão, hoje tão eclipsadas do nosso panorama literário.
Também Adalberto Alves surge como um dos autores que privilegia na sua oficina essa fértil relação, de antiquíssima tradição. Não é só a poesia que se torna assim mais pobre, no seu universo, mas é também a experiência humana que reflecte os sinais de uma época para a qual a tradição pouco importa. Uma época que, em boa verdade, pouco se compadece com o poder mágico da linguagem e das suas ressonâncias, procurando antes no realismo mais rasteiro a sua inspiração.
Todavia, a poesia escapa a todas as imposições e moldes que queiramos dar-lhe, ainda que ela seja também forma e, em Adalberto Alves, esta é também estruturante, na maneira como o poeta opera sobre a linguagem com os seus dispositivos retóricos, revelando como domina a métrica e a rima, os modos poéticos, alternando, preferencialmente, entre a quadra e o terceto, usando as mais diversas figuras de estilo com mestria.
Alternando entre vários registos, A.A. vai entre o poema mais formal e o poema em prosa, mais livre e narrativo, com o mesmo à-vontade, mostrando a sua ousadia, no que respeita à linguagem e ao seu trabalho formal.
Se a presença do estóico Séneca é igualmente identificável como um dos esteios fundamentais da sua obra, ela vislumbra-se serena e vivificada no modo como aceita o sujeito poético a passagem do tempo e da vida e o seu carácter inelutável.
Chegam-nos ecos, ressonâncias dos diálogos do filósofo Séneca, em particular de A Constância do Sábio ou de Sobre a Tranquilidade da Alma, numa espécie de aragem, lavrando a linguagem e conferindo-lhe um tom melancólico, mas concomitantemente faz-se sentir o amor de Rumi, o poeta sufi, respirando em alguns versos. Se a melancolia traz consigo uma gravidade, a leveza de Rumi, o grande poeta sufi, transparecendo em alguns versos, traz consigo uma leveza e constitui-se como um contraponto que inscreve o poema na incandescência e na celebração do instante.
E se de Rumi falamos, então não podemos ignorar em A.A. a presença do Amor, aqui simbolizado, não unicamente como desejo erótico, mas essencialmente como elemento fusional de toda a experiência humana.
O Amor que é, a um tempo, profano e sagrado, particular e universal. Esse «Amor», a que o poeta se refere, diz respeito a algo intocável, incorruptível pelo tempo, um «Amor» transcendental e divino. Ao mesmo tempo, ele encontra-se no coração de cada um, o que nos dá a medida desse gesto de procura de fusão com o Divino.
Uma das características fundamentais do estoicismo reside no treino da despossessão e de uma indiferença perante os bens, ao longo da vida, mas igualmente de uma distanciação perante os sentimentos. A sapiência consiste nesse desapego e só ele pode levar-nos, se não à felicidade, pelo menos á supressão do sofrimento pela sua aceitação e pelo reconhecimento da brevidade da vida.
Lateja aí a convicção de que o que vemos ou o que temos não pode ser possuído ou ainda de que aquilo que vemos não o podemos alcançar e nem sequer é visível: a ideia de que tudo não passa de ilusão. Não andamos por isso longe do preceito de Caldéron de la Barca, quando afirmava: «la vida es sueño».
Se a poesia não pode confundir-se com a filosofia, nem pode ser domesticada pelo logos, ela concentra no entanto vestígios ou rastos de um poder oracular, o que lhe confere esse mistério matricial, à maneira dos antigos pré-socráticos, que viam na poesia a condensação possível do seu pensamento. Também esse filão se encontra em A.A., embora aqui de forma não aforística, já que a voz lírica se sobrepõe à contenção e à precisão do aforismo, sobre o qual já havia trabalhado na sua obra A Presença dos Dias.
A.A. está, por vezes, mais próximo da construção de um poema árabe tradicional e da própria lírica tradicional portuguesa. Há aqui um «disparar» da imaginação que extravasa a contenção do poema breve e aforístico e creio que essa é uma escolha do próprio poeta. Mais: há um desbragamento da linguagem que caminha no encalço da desmesura, seguindo as pegadas do pensamento místico, como já aqui foi dito.
Na sua poesia damo-nos conta de um rasgão na dobra da linguagem: há um Ser que se afirma como pura presença, à maneira de um Rumi, mas essa afirmação também se ancora numa ideia heideggeriana de Dasein. Trata-se de uma incandescência pura ou epifania, como queiramos chamar-lhe, e que pertence a uma ordem de pura linguagem, onde o ser se apresenta como uma luz inabalável.
A Poesia é, ela mesma, o lugar da sua presença, espelho inabarcável, símbolo que leva também ao sonho, já que é impossível tocar o real. É impossível tocá-lo, mas não impossível sonhá-lo, como urgência, urgência que nos cabe em sorte e da qual não saberíamos prescindir, enquanto humanos. E é nessa melancolia ou nesse limbo em que tudo se instala, o lugar do insustentável e em que o desejo não pode cumprir-se, mas dele também não saberíamos abdicar, sob risco permanente de lhe sucumbirmo mas, ainda assim, enamorados da sua luz.
Maria João Cantinho
Escritora e Professora