
Eis um romance polifónico, à maneira de Lobo Antunes, muito bem escrito, e que é concebido de uma maneira circular. O círculo fecha-se porque, ao terminar-se o livro, o fotógrafo vai tirar ao hospital o retrato à Ana, a mulher que sempre recusou tirar fotografias. Diga-se que é com esta cena que começa o livro “Boa é a neve que em seu tempo vem”.
Outro dado curioso nesta obra é que cada heroína tem o nome começado por cada uma das letras do alfabeto.
Manuel da Silva Ramos
O retrato de um país lendo-o através do percurso, organizado alfabeticamente, de A a Z, de 26 histórias individuais de outras tantas mulheres.
João Mendes Ramos acaba de apresentar, com a chancela da Althum.com Editora, a sua primeira obra de ficção “Boa é a neve que em seu tempo vem”, um título singular pedido de empréstimo à sabedoria popular.
Apresentado no passado dia 19 de maio no “Festival Literário do Fundão” mereceu uma apreciação crítica favorável por parte do escritor Manuel da Silva Ramos:
… É uma obra de que o autor pode desde já sentir-se orgulhoso. Na verdade, para um primeiro romance o efeito é, a todos os pontos de vista, largamente positivo. E porquê? Porque é um romance optimista, muito agradável de ler, sensível e profundamente humanista. João Mendes Ramos arrasta-nos para o tempo do fascismo e depois para o tempo do pós-25 de Abril com mão de mestre e dá-nos um retrato exaustivo e coerente da vida social portuguesa através da odisseia de 26 mulheres. E diga-se isto sem temor de qualquer espécie: só pelo facto deste romance apontar os males endémicos nacionais e os vícios presentes ainda boiando na espuma dos dias portugueses […] este romance, dizia eu, já merecia a pena ser lido, pois não é todos os dias que, neste Portugal morno, se encontram romancistas com sentido crítico agudo…
Apresentado no passado dia 6 de junho na “Feira das Artes de Coimbra” foi alvo de uma leitura atenta, exigente e crítica por parte de António Sousa Ribeiro, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra:
…A ambição é desmedida: trata-se de traçar o retrato de um país lendo-o através do percurso, organizado alfabeticamente, de A a Z, de 26 histórias individuais de outras tantas mulheres. A forma do romance ensaístico ganha aqui contornos inusitados: a narrativa vai construindo um espaço de reflexão partilhado, potenciado pela organização eminentemente dialógica do percurso narrativo, e que redunda na reflexão sobre uma história comum, a partir de experiências de vida individuais arrancadas ao silêncio da violência e da exclusão. São vinte e seis histórias poderosas, unidas por um subtil fio condutor traduzido na recusa da resignação e na afirmação de uma memória sempre virada para a possibilidade de futuro.
No próximo dia 9 de junho, a partir das 18 horas, o Autor estará presente no pavilhão A85 da Feira do Livro de Lisboa numa ação de divulgação deste seu livro “Boa é a neve que em seu tempo vem”.
SOBRE O AUTOR
Nasceu em Nelas…, (vila à beira da serra da Estrela, onde os
partos ocorriam indiferentemente em casa e no campo, sem
dia aprazado nem hora marcada).
Numa ala da escola primária feminina…, (residência da professora,
sua mãe, na qual, entre as alunas das quatro classes
que lecionava, em simultâneo, aprendeu a ler, a escrever e a
resolver problemas com torneiras e comboios).
Cinco anos após o fim da 2ª guerra mundial, (num tempo
em que as pessoas cresciam a xaropadas de óleo de fígado
de bacalhau, sem chupetas, fraldas descartáveis, telemóveis,
internet e sorteios promovidos pelo fisco).
Estudou em Coimbra…, (cidade onde se licenciou em Direito,
praticou canto e artes plásticas e tomou consciência da necessidade
de lutar pela paz e pela liberdade)
Mudou-se para Lisboa…, (quando a esperança renascia nas
ruas e, entre presidentes, deputados, ministros, juízes e burocratas,
advogou, assessorou, defendeu teses, elaborou pareceres
e powerpoints, recebeu louvores e comenda)
Vive atualmente entre Lisboa e Sesimbra, (onde, aposentado
e sem jeito para a nobre arte da pesca, se dedica ao cultivo
de hortaliças, ao ténis, à leitura e à escrita).
Texto de apresentação no Festival Literário da Gardunha, 19 de Maio de 2017
VIDAS ESTRAGADAS DE MULHERES E RETRATOS QUE REDIMEM
Manuel da Silva Ramos
É muito raro escrever primeiros romances fulgurantes, isto é, obras-primas.
Joyce quando publicou “Ulisses”, em 1922, já tinha publicado antes três livros. Kafka antes de ter lido “O Processo” em 1920 ao seu amigo Max Brod, já tinha escrito em 1915 “As Metamorfoses”. Kawabata, o escritor japonês Prémio Nobel de Literatura 1968, quando publicou “Terra de Neve” em 1947, já tinha publicado anteriormente duas ou três obras. E Malcom Lowry quando publicou em 1947 “Debaixo do Vulcão” já tinha editado em 1933 “Ultramarine”. Quer isto dizer quão árduo é o trabalho do romancista e é muito natural encontrarem-se, nos últimos anos de vida de autor, os seus melhores romances. É que escrever um bom romance exige experiência de vida, muita leitura e um sentido agudo para a poesia. Claro, se se tiver sofrido, o resultado é ainda melhor.
Vem tudo isto a propósito do livro que apresento hoje aqui “Boa é a neve que em seu tempo vem” da autoria de João Mendes Ramos – uma obra de que o autor pode desde já sentir-se orgulhoso. Na verdade, para um primeiro romance o efeito é, a todos os pontos de vista, largamente positivo. E porquê? Porque é um romance optimista, muito agradável de ler, sensível e profundamente humanista. João Mendes Ramos arrasta-nos para o tempo do fascismo e depois para o tempo do pós-25 de Abril com mão de mestre e dá-nos um retrato exaustivo e coerente da vida social portuguesa através da odisseia de 26 mulheres. E diga-se isto sem temor de qualquer espécie: só pelo facto deste romance apontar os males endémicos nacionais e os vícios presentes ainda boiando na espuma dos dias portugueses (autoritarismo dos pais, prepotência e egoísmo dos maridos, violência doméstica, censura social tanto na província como na capital, ignorância crassa, religião cúmplice do poder, solidão abismática das pessoas, etc., etc.), este romance, dizia eu, já merecia a pena ser lido, pois não é todos os dias que, neste Portugal morno, se encontram romancistas com sentido crítico agudo.
Mas debrucemo-nos mais em detalhe sobre o destino destas mulheres e sobre o aguilhão doce e compreensível que as ajuda: o senhor Augusto, fotógrafo. Este retratista que cruza o caminho destas 26 mulheres surge neste romance em leitmotiv, perpétua presença que salva. O senhor Augusto tem um estúdio num bairro lisboeta e como é uma pessoa culta, simpática, ouvinte, além de ser um excelente fotógrafo, vai relacionar-se com as vinte e seis mulheres facilmente. A empatia é contagiante e nós ficamos subjugados pela força de salvamento destes encontros. Todas as vinte e seis histórias deste romance são a ler. Exceptuando Sami, a peruana, que foi acusada de tráfico de cocaína e as brasileiras Xiomara (mãe) e Yolanda (a filha), que sofrem do típico racismo português, todas as restantes heroínas são nacionais de gema. Há histórias que nos impressionaram terrivelmente e que nos deixaram revoltados literalmente, por exemplo, logo a primeira história do livro, a história de Ana que andava às arrecuas porque era a melhor solução para contrariar o medo patológico de que a atacassem pelas costas. Um dia, e porque andava às arrecuas, caiu num buraco de obras e ficou sem fala, no coma. O pai de Ana era um poderoso senhor feudal hipócrita, engenheiro – patrão de muitas propriedades no Alentejo com direito de pernada e cujo esperma marialva fazia filhos por todo o lado. Parece que estamos a ler aqui a “cartilha do Marialva” do Cardoso Pires “ a obsessão sexual em países civicamente menos evoluídos, pode tomar-se como uma transferência de desejo de autoridade ou como uma radicalização de liberdade num plano individual. Uma vez que a sociedade imponha ao cidadão profundas limitações de interesses cívicos, culturais e políticos, isto é, que o destituem de autoridade e de cidadania, recusando-lhes possibilidades de afirmação e de promoção na vida colectiva, ele procurará compensar-se a níveis pessoais, mais imediatos de comportamento”. O pai de Ana parece pois um marialva de Cardoso Pires, autocrata fornicador obsessivo que foi laminado pelo 25 de Abril e pela Reforma Agrária. E diz João Mendes Ramos na boca da mãe de Ana que só vê comunistas na nova sociedade: “já me chegou o teu pai ter-nos deixado naquelas circunstâncias trágicas […] porque se fosse vivo já lá tinha ido impor respeito [entenda-se, lá nos latifúndios ocupados] pela ordem natural das coisas e pela propriedade privada”.
Há outra história que nos revoltou também. A estória de “Ela”, filha de um alto funcionário do regime de Salazar que a sodomizou quando esta tinha 14 anos. Teve um filho do pai e o filho trabalha na Biblioteca Nacional. “Ela”, a mulher de quem não se sabia o nome, vai aí por fazer traduções, pretexto para ver o filho que não a conhece. Esta história emotiva, patética, portuguesa, descamba, claro, num suicídio. Também gostámos da história de Gabriela que nasceu Gabriel. Aqui foca-se o distúrbio de identidade de género e o autor deste romance tem a pena compreensiva e humana e restabelece a liberdade de comportamento invocando o exemplo do senhor Augusto, o fotógrafo. Cuja mãe o vestia também de rapariga.
Há histórias também de mulheres que valorizaram a sua vida pelo engajamento político ou pela revolta contra o opressor próximo (veja-se a Raquel que, quando o 25 de Abril chegou à serra, deixou de ser pastora para ir para a cidade erguer o punho; Maria a mulher de um mineiro que veio ao estúdio do senhor Augusto saber pormenores sobre a invasão do espaço por agentes da polícia política do fascismo; Urbana, a mulher do senhor doutor que matou o marido que era outro senhor feudal que não lhe dava liberdade e que em 15 anos lhe fizera oito filhos).
Enfim, todas as histórias são a ler neste romance que convoca, como disse, a revolta mas também a emoção, a piedade, a alegria da paz e por fim o amor e a felicidade. E o livro termina com o fotógrafo Augusto, lançado na corrente tumultuosa da vida, depois da morte da mãe, corrente essa que neste livro se chama “Boa é a neve que em seu tempo vem”, já nos braços da sua Zulmira, uma mulher que o compreende e o ama.
Em suma: Eis um romance polifónico, à maneira de Lobo Antunes, muito bem escrito, e que é concebido de uma maneira circular. O círculo fecha-se porque, ao terminar-se o livro, o fotógrafo vai tirar ao hospital o retrato à Ana, a mulher que sempre recusou tirar fotografias. Diga-se que é com esta cena que começa o livro “Boa é a neve que em seu tempo vem”.
Outro dado curioso nesta obra é que cada heroína tem o nome começado por cada uma das letras do alfabeto.
Qual é a mensagem deste livro cativante de João Mendes Ramos?
O autor parece querer indicar-nos que devemos ser Augustos, pessoas disponíveis, susceptíveis de tudo ouvir e não autistas de todo o tamanho, surdos como portas, indiferentes ao mundo.
Fundão, 19/5/2017
Manuel da Silva Ramos