O conjunto de contos que aqui se apresenta ao público é, contudo, uma obra inédita constituindo, mesmo, a sua primeira obra em género literário como único autor.
O autor afirma que foi tentado a explorar de forma mais intensa o género conto (nesta sua fase tardia da sua vida), pela simples paixão de contar estórias. E (acrescenta ainda) porque a poesia o abandonou. .
SOBRE O AUTOR
O autor é investigador em ciências sociais no Laboratório Nacional de Engenharia Civil e docente em Sociologia e Ecologia Humana na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. As suas publicações são, e na sua quase totalidade, de carácter científico. Tem participado em livros e artigos no âmbito destas suas atividades profissionais.
Nascido no interior do país e na região da Covilhã, cedo se iniciou, no entanto, em alguns textos de poesia em jornais locais (o extinto O Raio, da Covilhã, na década de 70 do século XX). Participou assiduamente em suplementos literários (entretanto extintos, como o caso de O Diário). Colaborou em coletâneas de poesia (no ex-Movimento de Escritores Novos/MEN, com Aristides Teixeira e Maria Azenha, entre outros), e em revistas de origem universitária.
Mantém (ainda hoje) uma colaboração estreita com a Liga dos Amigos do Tortosendo (Covilhã), e com a sua revista em papel, de circulação essencialmente beirã. Publica, também aí, textos dispersos.

É preciso mergulhar neste livro no final da jornada.
Sim, porque as histórias são mais saborosas à noite.
Antes de mais, dizer do prazer e da honra que é estar aqui a participar na apresentação do livro de João Lutas Craveiro, "Um Homem não tem Salvação no mundo dos batráquios".
Um prazer e honra redobrados por estar também convosco, que vieram uns de longe, outros de não tão longe assim, para acompanhar este momento. O lançamento de um livro é um evento de grande significado mas que só faz sentido com a presença dos amigos e familiares
Cumprimento o Dr. Luis Gomes, da Editora Althum pela sua política de promoção do livro e da leitura, e pela perspectiva de preservação e celebração do nosso património cultural.
Finalmente agradecer ao João Lutas Craveiro a gentileza do convite que me fez, e dizer ao autor, que apreciei muito que ele tivesse aceitado a minha sugestão para ser eu a apresentar-lhe o próximo livro.
Conheci o autor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em 2007, e desde essa altura que ele não cessa de me surpreender. Ao longo desta década, de muito falámos. Das suas origens, na região da Covilhã,da sua mãe que lhe recitava poesia e lhe chamava “o seu pequeno poeta” e de quem ele se despediu, indo por um caminho que ela conhecia, em direcção ao mar, a única direcção possível, pois o único destino é partir. A vida esgota-se num aceno, longa não é a vida, mas a recordação. Conversámos sobre as suas viagens por movimentos associativos culturais na década de 70, da Culturona ao Movimento de Escritores Novos, dos poemas e prosas escritas, às mais recentes publicações de cariz científico. E sobre o mal, do qual ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve) as saudades.
João Lutas Craveiro já nos habituou a ver nele não só um investigador científico, como um escritor cuja narração intensa e sofrida, nos surpreende. O autor é um observador atento do mundo que o rodeia, através do qual se questiona sobre si próprio e sobre o próprio mundo, tentando descobrir uma fracção de verdade. Uma vez vislumbrada essa verdade, e diante da necessidade de transmitir a profundidade alcançada, elabora e destila na sua escrita as imagens e as vivências acumuladas. Assim, JLC vai-se forjando nas próprias vivências e do calor da escrita, surgem belíssimos contos como estes que hoje aqui constituem este livro.
JLC revelou-me que os contos (e esta obra apresenta 31) foram consequência da sua sensibilidade desperta por momentos ou imagens muito especiais que se lhe iam deparando ao longo dos anos. Situações reais, experienciadas pelo autor, outras transmitidas em desabafo, por conhecidos ou anónimos na vida quotidiana. Ou escutadas de relance na partilha de um espaço exíguo de uma qualquer carruagem ou barco. Outras ainda trazem intensamente marcadas as memórias mais profundas, tais como o cinzento das fragas da Serra da Estrela, as lentas cantilenas dos Cursos de Cristandade na Nave de Santo António a La Virgen que se está peinando, Entre cortina y cortina, Los cabellos son de oro, Y el peine de plata fina, ou a lembrança dos suspiros de quem se esqueceu que uma mulher para ter salvação no mundo dos batráquios, tem de ter asas, saber armá-las e conseguir voar de uma balaustrada dourada.
Apresentar um livro, é uma tarefa ingrata e dependente da subjectividade e do sentir de quem o faz. Sempre considerei que um livro apresenta-se a si próprio. Não é raro ele revelar-se não só para o leitor como, por vezes, para o próprio autor. Numa livraria ou biblioteca há livros que nos captam a atenção, quer pelo seu Título / Autor / Capa / Posição do livro na estante. Somos atraídos como se de um íman se tratasse para este ou aquele livro. Lemos duas ou três palavras e, imediatamente, compreendemos o nível de profundidade, a palavra certa no lugar certo, a melodia e o ritmo da escrita, o respirar, o sussurrar do autor, o seu choro, o entendimento do mundo.
Atentando no título desta obra, este é sugestivo do destino. De um karma que ofusca a salvação. De uma realidade que nem sempre pode ser fantasiada. Um axioma católico antigo diz que "extra Ecclesiam nulla salus – fora da Igreja não há salvação". Na realidade, este título permite-me confabular e reescrevê-lo: “extraCompassio, Conscientia, Misericordia nulla salus”. O homem, diziam unanimemente os antigos, é um ser que esquece. Esquecendo a empatia, a consciência e a compaixão, não tem salvação num mundo de batráquios. E estes, têm pouca memória.
A saudade do que marcou a vida do autor, nos encontros e desencontros, encontramo-la em alguns destes contos, no “Amor” (Talvez o amor seja isto: um instante. Tudo o mais é recordação) e n”O Homem Que Não Morreu” (…pensou como o amanhecer é belo, e olhou para a estrada e as anémonas cor de púrpura por onde os mancebos escapavam, atravessando depois os loureiros).
A dor, que também se esconde em passagens curtas e expressivas que se espalham ao longo desta obra, como “…As máscaras ali penduradas, testemunhas expectantes (…) ninguém pode saber, não podes contar a ninguém porque é um segredo, uma mentira pobre, mas eficaz, uma cilada que rouba a infância…” (A mamã tb não quer que eu conte o que o vovô me faz); “…Depois de cada choro, um homem fica sempre diferente…” (A Luz corrompe as Crisálidas). Essa dor é aquela que Pessoa tão bem referiu “O poeta é um fingidor, Finge tão completamente, Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as suas que ele teve, Mas só a que eles não têm”.
Sim, as experiências da alma deixam marcas indeléveis. Umas de felicidade ou de prazer, outras, resultam em feridas, superficiais, ou profundas. E é precisamente nestas experiências, que a sensibilidade se exacerba e para os mais afortunados, aqueles a que os outros chamam de sonhadores, é incontestável a vocação libertária e catártica da escrita. Esta catarse encontra-se, p. ex., na leitura do conto “O Senhor Administrador e Eu” (Cretino e insolente, é isso o que o senhor é. Cretino e insolente. E idiota também”. Ou no doloroso “A mamã tb não quer que eu conte o que o vovô me faz”.
O absurdo que JLC transporta para esta obra é também uma complexa experiência terapêutica. A autor expõe introduz em alguns contos, elementos avassaladores, sem coerência num marco lógico previsível, mas incompatível com o elemento novo. Ao longo da leitura desta obra, várias foram as ocasiões em que me lembrei das Histórias com Juízo, de Mário Castrim, dos Contos do Gin Tónico, de Mário Henrique Leiria, ou das peças de teatro de Beckett ou Ionesco.
As matérias abordadas nestes contos não são assuntos privados do JLC – nem são propriedade de quem edita ou de quem adquire o livro. São intimidades, dos outros que imaginados pressentimos que existem. São coisas de épocas, questões sobre a sociedade e a sua evolução (ou regressão), são inquietações do nosso tempo, porque como sabemos todos, o mundo privado de cada um acaba desconcertantemente por se amalgamar com o de outro. Confundem-se de tal forma que ao ler alguns desses textos, independentemente do nosso lugar de nascença, daquilo que somos e das nossas circunstâncias, ficamos com a certeza de conhecer os intervenientes, as situações, as palavras que foram ditas e sobretudo aquelas que não foram ditas. Apenas algumas vezes os finais se alteram:
A estória que eu sei teve um fim diferente – dirá um leitor. É esta possibilidade de recontar a mesma história, através de um final diferente que torna tão grande cada um destes pequenos contos, e tão diferente como cada uma das noites que antecedem os diferentes dias que ainda têm de nascer.
E é preciso mergulhar neste livro no final da jornada. Sim, porque as histórias são mais saborosas à noite. Quando o frio se insinua junto do corpo e por isso se procura o aconchego de uma camisola e de umas meias escondidas no fundo da gaveta e o calor de uma memória guardada em segredo. A luz de um candeeiro incendeia os nossos olhos e as figuras negras das letras alinhadas nas páginas deste livro formam cenários de locais que não vemos fisicamente, mas que acabamos por conhecer numa intimidade consentida. Invadimos silenciosamente mundos diferentes ou estranhamente iguais ao nosso e sonhamos mais um pouco, antecipando um sono sossegado povoado de dias claros que começam a desaparecer. Talvez nos quedemos a pensar um pouco e esse pouco seja já suficiente para respirar a atmosfera que do exterior insiste em pintar os dias de cinzento. Mas mesmo assim, há sempre um filtro que tudo relativiza e acaba-se por estranhar a guerra que já vem chegando. Depois será vindo o tempo de mergulhar no mundo e de, às vezes dolorosamente, lutar por cada pedaço de liberdade.
Se calhar as histórias também são mais saborosas à noite porque, ao não se ver bem o falante contador, ele toma a dimensão de um conhecedor, ou de um mito.
Abracem a serendipidade que este livro traz, e sejam felizes.
Lisboa, 30 de Outubro de 2017
Isabel Duarte de Almeida