Adalberto Alves deve ser dos poucos que, chegados ao Outono da sua vida, sabem que dentro de si arde uma chama de perpétua juventude, a conquista de se ter caminhado a si próprio. Chama que no seu olhar expressa-se com ser melancolia e compreensão, a de quem se reconciliou, depois de uma vida de combates, com o severo olhar do Tempo, pai de todos os deuses...
É difícil falar de todo o caminho da vida de um poeta. Mas é fácil e natural expressar gratidão pelo dom da sua alma, pelas flores da sua vida interna, que são os seus cantos.
É difícil e no entanto natural, sempre natural, manter erguida a chama da autencidade no meio das trevas vazias, no meio do labirinto e do cansaço, não do tempo vivido, mas dos sonhos frustrados que o tempo vivido tornou numa maldição.
Os ventos da vida vão querer arrebatar o fogo que tu portas. Quererão apagar a sua chama suma num silêncio desesperado e angustiante. Nesse vazio onde as rosas não brindam o seu perfume, nem a palavra «obrigado» é repetida, nem se ouve o sussurro de um «quero-te», num silêncio que não é de ouro e no qual as estrelas parecem tão distantes que o seu sorriso de luz nos é alheio.
Não sabemos, é o grande segredo, onde se encontra a alma de um poeta, pois parece irmã dos astros e da lua, do murmúrio das fontes e das brisas que estremecem o arvoredo, mas também do Sol, e do sangue que corre, do sorriso da criança e do grito de angústia de todos os que sofrem.
Onde está a alma do poeta ? Sabemos que penetra num mistério onde todos os ecos da natureza lhe emprestam a sua voz e a sua alegria, e também o seu sofrimento.
É a Alma, é a Mãe do Mundo quem beija e bendiz a sua testa abrindo-a aos sonhos impossíveis, quem beija e bendiz os seus olhos que tantas lágrimas de beleza chorarão, quem beija e bendiz a sua boca, que não mais lhe pertence pois a sua voz é agora a voz do céu e da terra, num íntimo e jamais compreendido abraço.
É poeta, e é o nosso poeta a quem rendemos homenagem, que sabe que «sonhando se nasce e se fenece / sonhando se constrói, como uma prece» e que «a vida arrulha-se encantando-se a si mesma»; que bebe de todos os cálices encantados que a vida lhe brinda, pois a sua alma diz: «eu era a alegria, o sol, o vinho / era a seiva dos bosques e a fonte / estava desnudo, dançando no caminho / nascido da manhã, rumo ao horizonte / ... tudo era música no meu coração».
É poeta, é o nosso poeta, que diz «enamoram-me as águas que murmuram» e, quem sabe que existe «uma rosa que os olhos não alcançam», quem diz ao Único, ao Senhor de toda a Vida, «que a tua lança me trespasse o peito». Aquele que, como Ibn ‘Arabi, segue a senda do Amor e a ela se entrega na Ara do destino: « Está escrito! / Uma estrela súbita / há-de rasgar as entranhas do espaço / e cravará no nosso peito o amor / que não conhece sujeito nem cansaço».
Pois o poeta é «filho das forças e das vozes / que habitam no deserto misterioso» e quem sente, como sentimos quando o sol raia no horizonte e golpeia, despertando a nossa alma, que «a campaínha do amor / toca nas entranhas da manhã».
E não quero mencionar mais versos, que o leitor deve ler na sua intimidade, procurando a alma secreta do nosso poeta e, quem sabe, também assim, a sua própria alma. Pois é uno o fio que trespassa e tece a vida e a existência e que o tear do tempo converte, no seu tecido de infinitas cruzes, em encontros e despedidas, em esperanças e ilusões: e sempre tu e eu, ele e tu não somos senão o Nome misterioso eternamente pronunciado.
Sabemos assim que a verdadeira solidão, a de ouro e aura feliz, não é senão verdadeira e fértil natureza, o espelho mágico em que todos vivem, como vive o amado nos olhos da amada: «dizer que os teus olhos são o mar...».
Incansável viajante, árabe de coração e, quem sabe nas suas lembranças,... enamorado, como todo o místico, dos resplendores da sua própria alma, que se descobrem depois na alma de tudo quanto vive, estudou desde os tesouros da espiritualidade sufi até aos ensinamentos do Bhagavad Gitâ hindu. Tem, sem dúvida, alma de renascentista, porque nada humano lhe é alheio e aprofunda tanto os mistérios da jardinagem como o simbolismo do comportamento animal, verdadeiro amante da zoologia; na sabedoria dos eremitas do deserto – ou dos morábitos do Portugal islâmico – ou nas entrelinhas do discurso de Krishnamurti, no qual desaparecem Amante e Amado, mestre e discípulo, ficando o homem desnudo envolto pelo silêncio.
Estas são, enfim, algumas das pegadas de um caminhante que, por ser místico e poeta, é realmente desconhecido: pegadas esforçadas e fecundas, testemunhos luminosos da passagem de uma alma.enamorada em direcção a Deus, como uma flecha lançada ao coração de tudo o que vive.
Um exemplo para todos nós que, tantas vezes, como quem se perde no deserto, caminhamos em círculos para chegarmos a parte alguma.
Existe um íman oculto, uma atracção permanente pelo sagrado, fonte de toda a beleza, verdade, bondade e justiça, e a vida: os versos e os livros de Adalberto Alves não fazem mais do que dirigir o olhar...e os seus passos para esse íman.
José Carlos Fernández