Seja como escritor ou como cidadão participativo, Adalberto Alves insere-se na História recente de Portugal com uma consciência multiculturalista em defesa da justiça, da liberdade e da democracia: um sonho para além das fronteiras geográficas culturais ou ideológicas. Na seara jurídica, fez, em sua advocacia militante a defesa de presos políticos, o que lhe custou alijamento e censura, tendo sido proibido de exercer cargos públicos durante a ditadura salazarista.
A presente obra é a última, até à data, da sua abundante produção poética. Nela, A. A. continua a aperfeiçoar-se no seu confronto com as questões individuais e coletivas e se ressignifica ao abarcar novos enfrentamentos: um farol sempre atento e guiado por um indissociável apostolado dialético. Eis um autor que rastreia as metamorfoses e o escalonamento de valores na vida contemporânea para (de)cantá-los em uma exegese pessoal, rica de apreensões filosóficas e metafísicas que são o escopo de uma posição diante da vida.
De muitas maneiras e chaves é composta a poética adalbertiana, escritor que culmina em transcendência, como resulta do próprio título. São textos de sofisticada contenção formal e que chafurdam em nossas mais ermas pulsões e instintos: as noites que nos habitam, os fogos do amor, os dilúvios da alma, os precipícios do coração, os embates da consciência, as fragilidades do ser: desvãos e atalhos vivenciais nesta época de terrível banalização da vida e da morte.
Todas essas nuances do percurso humano despertam no poeta uma rigorosa (auto)indagação, já expressa na sua obra Os dedos trans-lúcidos do escrevinhador (2020): “quem redime a agonia do mundo? / que deus veio à terra para o salvar?”
Num momento crucial de débâcle da humanidade, de negação do espírito de alteridade e instabilidades políticas que desaguam numa outra idade de trevas, e quando a pandemia do coronavírus escancara a nossa impotência, o poeta reconhece, na aludida obra que “a ignomínia é imparável, e ei-la em mim” e confessa, assombrado: “se a fraqueza do mundo é sua regra inelutável,/ em minhas mãos a tomo e dela me envergonho.”
Como eu já havia anotado, em outro texto, A. A., com seus versos contidos e precisos, dotados de invejável economia e de uma capacidade de dizer o máximo com o mínimo de recursos, é esse navegante preciso que empreende uma imersão no universo humano, cuja palavra transita entre o lírico e o social, do sentimental ao reflexivo, com uma sutil incursão no metafísico e na Nova Ciência, numa pluralidade de visões e percepções, conduzindo a sua arte poética a uma espécie de exegese do quotidiano e do transcendente.
Para além disso, a sua obra mira o alvo da insensibilidade e do alheamento, que vigoram, enquanto viajante do insondável e navegante das perplexidades humanas.
A. A. não se reserva nenhum pedestal, antes se contrapõe, vigilante, aos arruídos e aos holofotes da notoriedade, à soberba e ao desvario que tanto contaminam a vida e até mesmo a Literatura e conclui, sobre o seu percurso espiritual, num dos seus textos da presente obra:
era eu, então, inda bem jovem
e num dia, igual a tantos outros,
de repente, ao virar da esquina,
dei de caras com o Desconhecido.
mas nem sequer me amedrontei:
com se ele fosse um velho amigo,
sorri-lhe e abracei-o nessa hora
e, desde então, lá vamos seguindo,
juntos os dois, pela vida fora...
RONALDO CAGIANO
Poeta, escritor, crítico literário e membro
da Associação Nacional de Escritores (Brasil)