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Catálogo > Música > CDs > Canções e Rondas Infantis de Fernando Lopes-Graça
Canções e Rondas Infantis de Fernando Lopes-Graça
Fernando Lopes-Graça
18,00 € 16,20 € (-10%)

NAQUELE DIA
Naquele dia, cheguei à Rua Nova da Trindade em cima da hora do ensaio. Galguei a correr as escadas do número 18, até ao 2.º andar esquerdo em que sempre conheci a Academia de Amadores de Música. Ia trabalhar pela primeira vez com o Coro Cirandaam e a Maestrina Fátima Nunes, com quem devia montar as Canções e Rondas Infantis, de Fernando Lopes-Graça.
Esse impulso juvenil, tanto como o cheiro característico da antiga escadaria de madeira, transportaram-me à época em que, ainda criança, eu subia a mesma escadaria à mesma velocidade, sentindo o mesmo cheiro; para lá da porta envidraçada da Academia, várias pessoas contribuiriam para nutrir o meu entusiasmo pela Música e me dar as bases do que hoje sou.
Esse mundo, simultaneamente sereno e vivo, povoado de sons e da dedicação de quantos os produziam, compreendia figuras cuja relevância só mais tarde pude reconhecer inteiramente, mas que já então admirava com a mais pura sinceridade: a “minha” professora de piano, Madalena Sá Pessoa; os professores de formação musical, Isabel Soveral, Cristina Cunha, Luís Pinto e Cristina Brito da Cruz; e o venerável Fernando Lopes-Graça, figura ímpar cuja presença, ora silenciosa, ora humoradamente ruidosa, enchia e habitava aquela casa, que era dele e nossa.
Nesses anos, e embora não me faltasse a vontade de o fazer, nunca ousei aproximar-me do compositor e dirigir-lhe a palavra; sentia-me demasiado jovem, pequena e insignificante perante aquele que, apesar da minha imaturidade, eu reconhecida já como uma figura maior da música e da cultura portuguesas.
Ao mesmo tempo, essa consciência da grandeza de Lopes-Graça e do privilégio de coabitar um dado espaço com ele, por um lado, a par da intransponibilidade da minha timidez e reserva, por outro, geravam em mim um singular conflito que se traduzia no pensamento reiterado de que estava simultaneamente perto e, pelas minhas próprias idiossincrasias, incrivelmente longe de saber aproveitar a oportunidade ímpar que me era assim oferecida. Em qualquer caso, a presença de Lopes-Graça e o sentimento de pertença comum à AAM enlevavam-me, impeliam-me, inspiravam-me e davam-me uma motivação inexcedível.
Mais tarde, já aluna da Escola Superior de Música de Lisboa, tive a ocasião de tocar, com o meu amigo Joaquim Rodrigues (que conhecera na AAM), a Primeira Sonatina para Violino e Piano de Lopes-Graça no Museu João de Deus, em Lisboa. Corria o ano de 1993; nessa altura, foi o compositor que veio ao nosso encontro e, com o seu característico sentido de humor e espontaneidade, estabeleceu o contacto, gerando duas das situações mais deliciosamente memoráveis do meu percurso artístico.
De facto, pouco antes de entrarmos em palco, eu e o Joaquim reparámos que o programa mencionava apenas os três primeiros andamentos da obra que íamos interpretar, tendo o quarto e último sido omitido. Pedi ao Joaquim que, antes de começarmos, anunciasse a retificação mas, no momento oportuno, nenhum de nós se lembrou de o fazer, e começámos a tocar.
Como seria de esperar, dado o carácter virtuosístico e enérgico do terceiro andamento, o público irrompeu numa estrondosa ovação assim que chegámos ao fim desse passo da obra, acreditando que tínhamos concluído a interpretação. Depois de algum tempo sem conseguir impor a sua voz sobre as ruidosas palmas, o Joaquim logrou explicar, com a sua fleuma habitual (simultaneamente soturna e bem disposta) que, “se não se importassem”, tocaríamos mais um andamento e levaríamos a obra até ao fim.
Nisto, levanta-se Lopes-Graça de entre o público, sobre o lado esquerdo da sala, e diz, alto e bom som: “Ande lá, homem! Já que está a tocar tão bem, toque!” Escusado será relatar a gargalhada geral que se ouviu, antes de arrancarmos novamente, cheios de energia e boa disposição.
Logo que acabámos, Lopes-Graça dirigiu-se a mim e propôs-se autografar a partitura que eu utilizara. Feliz com a proposta, de imediato lhe agradeci a atenção e expliquei o quanto me fazia sentir honrada, passando-lhe para a mão a dita partitura. Destapou a caneta de tinta permanente e refletiu um momento; por fim, virou-se para mim e perguntou: “Posso pôr dois beijinhos?” Sem perceber bem a questão, sugeri-lhe que escrevesse o que quisesse. Redigiu então: “Para a Ana Isabel, com dois beijinhos”; datou, assinou, e devolveu-me a partitura.
Perante o meu agradecimento cordial e respeitoso, retorquiu, aparentemente irritado: “Então e os meus beijinhos, onde estão? Isto é assim?!”Só então percebi o alcance da pergunta inicial; corei, envergonhada, e preguei-lhe nas faces com os dois beijos que reclamava sem cerimónia.
Depois desse dia, não voltei a ver Fernando Lopes-Graça. Lembro-me de ouvir na rádio, poucos meses depois, a notícia da sua morte, e de ter estancado, no meu pequeno estúdio de Alfama, incrédula, triste, assentando a perda como se da de um ente próximo se tratasse. Inexplicavelmente, não fui capaz de arredar da AAM enquanto o corpo lá esteve depositado, em câmara ardente, antes da cerimónia fúnebre a que não assisti.
Desde então, várias foram as ocasiões em que tive a oportunidade de interpretar obras suas ao piano, realizar trabalhos musicológicos recorrendo ao seu espólio, orientar dissertações relacionadas com a sua figura e obra, apoiar o trabalho de estudantes na descoberta da sua vasta e riquíssima produção musical... Em todos esses momentos me senti privilegiada por ter tido um conhecimento pessoal, embora superficial e parco, do autor, e rememorei as cenas que acima descrevi, bem como muitas outras imagens da sua presença na AAM ao tempo em que eu a frequentava. Mas em nenhum deles tive uma impressão tão vívida de regresso ao passado como no dia do ensaio que comecei por evocar nestas linhas; nunca como então me senti tão próxima da menina que era quando ele por lá passava os seus dias e horas, tão consciente do seu legado sobre mim e tantos colegas de então, tão grata pela proximidade relativa que me foi dado ter com Lopes-Graça e pelo alcance da influência que, apesar de tudo, sei que exerceu sobre mim.
Imagino que seja por me identificar, num recôndito espaço do meu ser, com as vozes que vos legamos neste registo discográfico; com o mundo que elas corporizam; com a música a que dão vida; com a singular coerência, sinceridade e plenitude artística do compositor das Canções e Rondas Infantis. Espero que a escuta destas miniaturas musicais possa transportar o leitor-ouvinte ao extraordinário mundo de Fernando Lopes-Graça, e exerça sobre ele o seu poder regenerador...
Ana Telles
Évora, 2017
Ano de edição: 2017 Formato: 14,5x12,5 Encadernação: Capa dura Páginas: 52 Classificação: CDs
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