É a homenagem a um Homem sério e íntegro, que dignificou e dignifica Silves, o Algarve e o País, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de abril de 1974. A história de vida de Vítor Cabrita Neto é exemplo e inspiração.
Rosa Cristina Gonçalves da Palma
A Presidente da Câmara de Silves
A biografia de Vítor Cabrita Neto traduz um percurso pessoal que integra vários ciclos de vida, desde a agitação estudantil até ao compromisso empresarial, passando pela emigração, pela política e pelo governo, refletindo um enorme paralelismo com as etapas da evolução da sociedade portuguesa nos últimos decénios.
João Guerreiro
Professor Emérito da Universidade do Algarve
Este livro é uma não-biografia!
É a história de vida de um homem cujo percurso nas suas várias etapas, consciente ou inconscientemente, teve como denominador comum uma vontade inabalável, a sua própria. É a história de um cidadão singular imbuído da verdadeira essência das palavras “Liberdade” e “Democracia”. Este livro é um tributo à sua luta pela cidadania plena dos Portugueses.
Maria João Raminhos Duarte
Valeu a pena! É preciso continuar a lutar!
O Algarve, o País e as novas gerações assim o exigem!
Vítor José Cabrita Neto
Vítor Cabrita Neto, a celebração da vida
de um homem singular
Nas comemorações dos 50 anos do 25 de abril de 1974, o Município de Silves, Município de Abril, comemora a efeméride, promovendo intensa e multifacetadas atividades ao longo de todo o ano.
É neste âmbito que se enquadra a edição desta biografia, que pretende evocar e perpetuar o testemunho de uma vida ímpar, de um cidadão que teve participação qualificada na resistência antifascista e na construção da Democracia, saída da ação gloriosa do Movimento dos Capitães. É a homenagem a um Homem sério e íntegro, que dignificou e dignifica Silves, o Algarve e o País, nas vertentes da intervenção política, social e económica.
Político, intelectual, comunicador exímio, empresário e gestor, convicto das suas ideias, evidenciou-se grande estratega e especialista no setor do turismo, nomeadamente o algarvio, mas também líder da atividade empresarial, na sua empresa, criada pelo seu pai, Teófilo Fontainhas Neto, que a assumiu num contexto altamente crítico, salvando-a e elevando-a a patamares de excelência, a par, da liderança do Núcleo Empresarial da Região do Algarve (NERA).
A história de vida de Vítor Cabrita Neto é exemplo e inspiração para os que almejam a transformação progressista da sociedade, no sentido do aprofundamento da democracia e do desenvolvimento, indissociável de um mundo mais livre, justo e solidário.
A biografia é uma narrativa cheia de humanidade e significado. A memória é o fundamento da identidade que nos permite perspetivar o futuro. É este percurso de vida que o Município agora dá à estampa e pretende deixar como legado para os vindouros.
A Presidente da Câmara Municipal de Silves
Rosa Cristina Gonçalves da Palma
Vítor Cabrita Neto, um algarvio do mundo
A biografia de Vítor Cabrita Neto reflete um percurso carregado, muito diversificado e traduzindo uma permanente, intensa e comprometida intervenção social. O traço singular deste percurso, no qual estão refletidos, não um, mas muitos ciclos de vida, merece uma atenção cuidada. A biografia apresentada pela Professora Maria João Raminhos Duarte abrange as diversas fases da vida de Vítor Cabrita Neto e permite uma imersão no respetivo itinerário, mas sempre com uma constante preocupação de convocar o ambiente social e político que enquadra as diversas etapas desse caminho.
Aprende-se muito quando se analisa uma biografia.
Aprende-se naturalmente a densidade do perfil do biografado, os seus desafios, os seus receios, as suas realizações ou as suas reflexões. Por esta via consegue-se conhecer o carácter do biografado, identificar as suas capacidades de singrar através dos obstáculos da vida e atribuir-lhe os méritos associados aos êxitos atingidos. A componente estritamente pessoal preenche naturalmente o foco principal de qualquer biografia.
Mas, a história de vida de uma personalidade, como a do Vítor Cabrita Neto, permite também convocar a dimensão do enquadramento social, político e até económico que terá possibilitado ou até estimulado esse percurso de vida. O vínculo entre o percurso pessoal e o contexto social reflete sempre um equilíbrio que pode ser mais ou menos harmonioso, ou melhor dizendo, que pode revelar etapas com diferentes graus de convergência, nas quais se revela a determinação e a clarividência da expressão pessoal.
Analisando a experiência de Vítor Cabrita Neto, é possível fundamentar com enorme aproximação o cenário, muitas vezes contraditório, entre as convicções pessoais e o condicionalismo que ao longo de mais de 60 anos foi enfrentando.
Perante a intolerância do Estado Novo, uma situação reconhecidamente condimentada com aspetos socialmente perversos, importados dos regimes fascistas europeus, o setor da juventude era um dos mais afetados. Contestação que se generalizou com o início da guerra colonial (1961), num período em que os impérios europeus tinham já concluído a descolonização dos seus territórios ultramarinos. Vítor Neto revelou-se nesse ambiente de contestação estudantil, contra as limitações de liberdade e contra a perversidade do sistema universitário. Com esta posição, engrossou o fluxo de elementos expulsos da universidade portuguesa, o qual abrangeu, como é sabido, professores e estudantes.
A situação criada convidava à saída do país, para evitar prisões, mobilizações para o serviço militar e outras restrições, designadamente limitações de acesso ao emprego público. Vítor Neto seguiu o caminho de Itália. Aí associou-se naturalmente à oposição ao regime fascista português, a qual reunia personalidades residentes em diversos países da Europa e do norte de África e tentava influenciar a evolução de Portugal. O seu posicionamento volta a refletir uma vontade de mudança que permitisse conciliar os portugueses com o desígnio do desenvolvimento e, sobretudo, com a adoção dos direitos fundamentais de opinião e de pensamento, de associação, de acesso livre ao trabalho e de reconhecimento da diferença, sem que isso introduzisse qualquer forma de delito ou de penalização pessoal. Estamos, recorde-se, no rescaldo da aprovação pelas Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada no final dos anos 40 do século XX, mas rejeitada sem apelo nem agravo pelo governo português.
A revolução de abril permitiu o regresso a Portugal de muitos portugueses emigrados. E Vítor Neto foi um desses portugueses regressados. Durante alguns anos adotou estratégias de trabalho político convergentes com a sua atividade no exterior, sempre investindo e procurando intervir na consolidação da situação democrática aberta pelo 25 de abril.
A evolução social em Portugal e no mundo levam-no a reconverter a sua posição e a abandonar certas utopias pouco flexíveis e apartadas da evolução das sociedades atuais. Garantindo, embora, a sua capacidade de intervenção e os seus desígnios maiores, sempre presentes no seu percurso, integra com enorme energia a atividade privada de cariz familiar, dinamizando o grupo económico de referência construído pelo seu pai: Teófilo Fontaínhas Neto.
É neste âmbito que concretiza, com os seus irmãos, a refundação da empresa, adaptando-a aos novos desafios decorrentes do perfil económico da região algarvia. Mas, mantendo em atividade o setor que tinha sido a estrela que permitiu a fundação da empresa: a valorização dos frutos secos algarvios. É ainda neste patamar que é escolhido pelos empresários algarvios para presidente da Associação Empresarial Regional (NERA).
O novo percurso algarvio e empresarial foi suspenso por força de um convite para integrar o governo, como Secretário de Estado do Turismo. Como noutros momentos e noutras atividades, a inserção neste nicho, particularmente difícil em Portugal, mas com reconhecido impacto na estrutura económica portuguesa, foi de estudo, responsabilidade e resultados reconhecidos.
O regresso ao Algarve permite a recuperação da presidência da Associação Empresarial e o lançamento de inúmeros projetos de parceria com as principais entidades regionais, das quais a Universidade do Algarve.
Neste rápido sobrevoo, que obriga à leitura do texto preparado pela Professora Maria João Raminhos Duarte, pode realçar-se a postura de Vítor Neto sempre exigente para com as atividades em que esteve envolvido, procurando permanentemente associar conhecimento às suas apreciações e decisões, desafiando os parceiros com os quais poderia fazer evoluir as suas opções e adotando uma visão convergente com o interesse da comunidade.
A sua biografia traduz um percurso pessoal que integra, como disse, vários ciclos de vida, desde a agitação estudantil até ao compromisso empresarial, passando pela emigração, pela política e pelo governo, refletindo um enorme paralelismo com as etapas da evolução da sociedade portuguesa nos últimos decénios. No quadro dessa evolução, Vítor Neto interveio sempre com um espírito aberto, caloroso, empático e, sobretudo, sempre atento às questões relacionadas com a evolução social.
João Guerreiro
Professor Emérito da Universidade do Algarve
Aviso à navegação:
Este livro é uma não-biografia!
É a história de vida de um homem cujo percurso nas suas várias etapas, consciente ou inconscientemente, teve como denominador comum uma vontade inabalável, a sua própria.
“Ao revisitar os lugares de uma viagem que já vai longa … 80 anos … não deixa de ser curioso verificar que, apesar da passagem por etapas e desafios muito diferentes, elas cruzam-se numa linha comum de valores e opções de vida, livremente assumidos.”1
Deste modo, a sua vida, “apesar de não ser planeada, não foi fruto do acaso. Reflecte raízes e valores familiares, vivências sociais, que geraram sensibilidade política e uma aspiração de Liberdade, Democracia, Justiça Social. Induziu vontade de luta e determinação para enfrentar obstáculos, na acção política e na actividade empresarial.”2
Apesar de o acaso e a fortuna lhe terem alterado o destino natural de um jovem provinciano, a consciência da sua vontade e da sua singularidade foi precoce, pelo que todas as suas escolhas foram feitas, efectivamente, “de propósito.”
Ao aceitar o desafio da Câmara Municipal de Silves, tive imediata consciência da dificuldade do repto, uma vez que a missão de condensar a vida de um homem da gesta de Vítor Cabrita Neto é verdadeiramente difícil.
A priori, a tarefa não se adivinhava fácil, tal é a multiplicidade de papéis e as invulgares capacidades de trabalho, polifacetado, que desempenhou e desempenha.
A sua excelência em diversas áreas, política, económica, social, turística e empresarial é muito justamente reconhecida, pelo seu inestimável contributo e acção, sobretudo nas áreas relacionadas com o Algarve e as suas potencialidades, com a melhoria das condições de vida dos portugueses e especialmente dos algarvios, sempre eivado de um espírito de justiça social, muitas vezes ausente na praxis política do mundo contemporâneo.
Ao compor a (não) biografia de Vítor Cabrita Neto, encontrei-me diante de uma encruzilhada.
Como poderia eu, mera narradora dos factos e feitos alheios, capturar a essência vibrante da sua existência, entrelaçando as suas palavras, as suas angústias e triunfos com a multiplicidade habitual de fontes históricas?
Portanto, biografar, nos nossos dias, Vítor José Cabrita Neto é quase uma impossibilidade, pois a sua actividade continua imparável e as suas realizações têm um impacto real e significativo na região, contribuindo para o enriquecimento cultural, social e histórico da sociedade algarvia hodierna.
Assim, tomemos em consideração que este trabalho constitui somente um esboço biográfico de um homem cujas acções e decisões contribuíram significativamente para os destinos dos Portugueses nas últimas décadas do Estado Novo e no pós-25 de Abril de 1974.
Assim, este livro não é mais que um caderno aberto, onde todos os contributos são bem-vindos até porque é uma forma valiosa de preservar a história e o legado de uma personalidade relevante na história do século XX português.
Por ter, ainda, muito para dar ao Algarve e ao país, uma biografia futura de Vítor José Cabrita Neto dar-nos-á uma compreensão mais profunda das complexidades que moldaram a personalidade única deste algarvio, permitindo que as gerações futuras compreendam e se inspirem no seu percurso de vida.
Este desafio enquadra-se, portanto, na necessidade de actualização da História Contemporânea de Portugal e, sobretudo, da relação desta com a história regional do Algarve e, especificamente, com a história da resistência ao Estado Novo e com a história da institucionalização do regime democrático.
Oferece, ainda um contributo inédito e imprescindível à construção historiográfica nacional contemporânea, à história da resistência dos movimentos estudantis europeus, à história da resistência portuguesa sediada em várias cidades europeias e em Argel, bem como para a história do movimento comunista europeu e suas organizações no pós-guerra e para a história dos movimentos de libertação africanos.
Este trabalho colmata ainda um hiato gritante na histografia da resistência portuguesa à ditadura no estrangeiro.
Ao contrário da França, do Luxemburgo, da Bélgica, da Suécia, da Suíça e da Dinamarca, sobre os quais há bibliografia e fontes abundantes sobre a resistência portuguesa nesses países e as suas organizações, o conhecimento da acção e organização da resistência portuguesa em Itália é ainda pouco conhecida pelos estudiosos e ainda menos pelos Portugueses.
Essas relações historiográficas tiveram implicações no que concerne aos métodos de investigação.
Para além da consulta de bibliotecas e da documentação disponível nos arquivos estrangeiros, nacionais, regionais e locais, públicos, particulares e on-line, a imprensa teve papel primordial.
A consulta dos arquivos da extinta PIDE/DGS, do Ministério do Interior, de Oliveira Salazar, na Torre do Tombo, do Arquivo Histórico-Militar, do Arquivo Histórico-Parlamentar e do Arquivo Distrital de Faro revelou-se fundamental para orientação e aferição dos dados obtidos através das memórias escritas e orais. A consulta e pesquisa no Arquivo Municipal de Silves e no arquivo da empresa Teófilo Fontainhas Neto foram também preciosas.
Neste âmbito, privilegiei as pistas de um passado recente que aqui procurei desenvolver e recriar, pois são tantas e tão grandes as transformações que nos esperam no futuro que, para as podermos avaliar, precisaremos da utopia que invoca o passado absorvido por existências de vida mais poderosas, como a de Vítor Cabrita Neto.
A mais-valia que o próprio trouxe ao meu trabalho é indizível.
O meu biografado, para além do insubstituível conhecimento que me transmitiu sobre a sua realidade, ele próprio se prestou, em meu auxílio, a transformar-se em investigador.
À sua excelente colaboração se devem inúmeros pormenores e factos da vida quotidiana no tempo da ditadura, nomeadamente sobre o trabalho, a indústria, as instituições do regime, as associações recreativas e desportivas, os oposicionistas, o PCP e as suas lutas. As informações que me transmitiu encontram-se presentes também na “intertextualidade” narrativa do trabalho.
Além da riqueza inesgotável dos seus depoimentos e das fontes de grande valor informativo e muitas vezes únicas, Vítor Cabrita Neto mergulhou, despretensiosamente, na sua memória e, em meu auxílio, registou a sua vida. Muitos documentos, fotografias e contactos não me teriam chegado de outra forma.
O meu biografado abriu-me, assim, as portas da sua vida.
Neste sentido, o invejável arquivo pessoal (particular) de Vítor Cabrita Neto foi uma ferramenta da maior utilidade. A sua vida política, institucional e empresarial encontra-se exemplarmente registada e arquivada, pelas sábias mãos de sua mulher, Simonetta Neto.
A construção do arquivo pessoal de Vítor Neto é resultado de um processo dinâmico, eivado de intencionalidades, significados e interpretações, mas também produto de outras funções utilitárias e funcionais.
A sua unidade estende-se ao longo das diversas etapas da sua vida, em função das suas necessidades, critérios e interesses pessoais, que determinaram que documentos mereciam ser mantidos e conservados.
Nesse sentido, e apesar de sabermos que os múltiplos processos de selecção de documentos são condicionados por determinadas lógicas e circunstâncias, este arquivo revela uma intenção deliberada em reter e acumular, num processo consistente e sistemático, a actividade de Vítor Neto. Sem o trabalho aturado de Simonetta Neto, esta obra seria muito mais pobre.
Por isso, não posso também deixar de expressar a minha mais profunda gratidão a Simonetta Neto, por ter aceitado o meu desafio de fazer a revisão desta investigação.
O seu comprometimento e minuciosidade foram fundamentais para aprimorar a clareza e coerência do texto, corrigindo as minhas imperfeições e sugerindo melhorias que, sem dúvida, elevaram o padrão da escrita. Em cada sugestão e observação, Simonetta revelou a sua profunda compreensão e mestria, não apenas das regras gramaticais da Língua Portuguesa, mas também da essência do conteúdo deste livro, contribuindo para que a minha mensagem fosse transmitida de forma mais eficaz e envolvente.
Sabemos que a atenção dos historiadores para com os arquivos pessoais (particulares) conheceu um ponto de viragem a partir de meados da última década do século XX, num contexto de afirmação dos novos paradigmas pós-modernos, com vários autores a questionarem a relevância e a pertinência dos princípios arquivísticos cristalizados nos arquivos públicos e institucionais.
O debate suscitado em torno da natureza dos arquivos pessoais rapidamente evoluiu para um reconhecimento claro de que os documentos produzidos e reunidos por pessoas singulares partilhavam das mesmas características orgânicas que os documentos criados em contexto administrativo.
Esta tendência culminou, de resto, na emergência dos arquivos pessoais enquanto objecto de estudo científico e na sua aproximação aos arquivos administrativos/institucionais.
Assim, a riqueza documental do arquivo pessoal de Vítor Cabrita Neto permite não só conhecer de forma mais aprofundada a vida do seu produtor, como também, a partir dela, os vários contextos políticos, sociais, científicos e culturais nos quais este participou e testemunhou.
Por constituir um repositório único de informação científica, o arquivo permite igualmente abrir perspectivas para a investigação em várias áreas, das quais se destacam a História, o Turismo, a resistência à ditadura e o regionalismo algarvio.
No labirinto do arquivo de Vítor José Cabrita Neto, onde o silêncio ecoa as vozes do passado, encontrei verdadeiros tesouros esquecidos de uma geração imortalizada pelo seu fervor na luta contra a opressão do regime ditatorial português.
Envolvida pela névoa do tempo, mergulhei nas páginas amareladas dos relatos inéditos, nos testemunhos autênticos de muitos protagonistas, alguns desconhecidos da investigação histórica.
Os arquivos são criados para ajudar a sociedade a lembrar-se do seu passado, das suas raízes, da sua história, que, por definição combina o público e o pessoal.3
«Recordar», para o indivíduo é, afinal, tanto pessoal quanto social, tanto interno quanto externo, tanto privado como público. Assim também deve sê-lo, colectivamente.
Partindo do pressuposto de que a atitude de reunir e preservar documentos pessoais encontra-se intrinsecamente relacionada com a identidade individual, desenvolvi a análise do seu espólio particular, questionando-me de que forma um arquivo pessoal poderia evoluir de um projecto individual de memória, – “evidence of me – para se afirmar como um projecto de memória social e colectiva – evidence of us.”4
A progressiva valorização dos arquivos pessoais é tributária, em grande medida, de um renovado olhar da historiografia em torno das temáticas relacionadas com a história da vida privada, a qual tem utilizado estes conjuntos documentais para estudar personagens, temas, lógicas e temporalidades.5
A esta dinâmica encontra-se associado o reconhecimento da importância dos arquivos pessoais enquanto repositórios únicos de informação, essenciais para documentar aspectos da sociedade não abrangidos pelos arquivos públicos e institucionais.
Deste modo, o estudo biográfico deve ser realizado não só com o fim de procurar a singularidade do indivíduo, mas também com o objectivo de conhecer as estruturas, os contextos e as dinâmicas do seu tempo.
Portanto, interessou-me fundamentalmente estudar o indivíduo para, a partir daí, apreender e compreender as macro-realidades sociais das circunstâncias da sua vida.
Os arquivos pessoais são construções humanas.
Assim, acredito que os arquivos pessoais, para além de resultarem de acção individual, constituem parte do tecido que molda a memória histórica e colectiva das sociedades.
Pretendi que, alicerçada numa noção dialéctica da realidade, a biografia de Vítor Cabrita Neto suscitasse a compreensão do conjunto (a sociedade) a partir da sua “individualidade singular.”
A sua singularidade reside no facto de conseguir expressar a designada “particularidade do indivíduo”, documentando a relação entre as escolhas e a liberdade concreta do sujeito com os contextos e comunidades em que este se insere.6
A abordagem do método de estudo biográfico centra-se, assim, numa análise ampla que singulariza no indivíduo a universalidade da estrutura social.
Tal asserção implica considerar que o indivíduo não constitui um “átomo social”, isto é, um ser extrínseco à pluralidade de contextos que o rodeiam, mas sim um “produto sofisticado” desses mesmos contextos.7
A recusa por uma concepção nominalista e atomística do social significou, pois, conceber Vítor Neto como uma síntese complexa das redes de relações e das estruturas sociais nas quais esteve inserido e em que participou activamente como sujeito.
Neste sentido, este estudo biográfico procurou ser o mais abrangente e exaustivo possível, de forma a captar a amplitude do meu biografado.
Sei bem que os indivíduos são influenciados por contextos e conjunturas políticas, económicas, sociais e culturais, que condicionam e moldam o seu percurso de vida. Essas circunstâncias tendem a reflectir-se, por sua vez, na informação que produziram e acumularam, pelo que é essencial que o estudo biográfico inclua essa mesma contextualização.
Reafirmo que a adequação dos métodos ao objecto de estudo levou a uma conjugação de metodologias, nomeadamente a pesquisa de relatos, de testemunhos, de narrações de vida e entrevistas, a fim de dar todo o sentido aos silêncios e aos hiatos inerentes ao processo de (re)construção histórica.
O uso da História Oral enriqueceu o processo de pesquisa e muitas informações encontram-se presentes na “intertextualidade” narrativa do trabalho.
Assim, este estudo biográfico apresenta, em forma ensaística, de carácter exploratório, o percurso biográfico de Vítor Cabrita Neto.
Nele são fixados os principais aspectos da sua vida, através do seu arquivo pessoal, e exploradas as várias esferas de suas actuação e actividade, nomeadamente enquanto estudante insubmisso e participante na crise académica de 1962, dirigente político-partidário em Itália, militante e dirigente do PCP, secretário de estado do Turismo, deputado, empresário, publicista e, acima de tudo, enquanto visionário, por excelência, do futuro do Algarve.
Os tempos retratados viveram uma espécie de época mágica.
Foi um tempo transbordante saído de duas guerras mundiais devastadoras, que clamava por mudanças. Foi um tempo e um processo de aceleração histórica que moldou a forma de pensar o mundo moderno em que estamos inseridos.
Vítor Cabrita Neto foi (e é) um Homem do seu Tempo!
O trabalho encontra-se dividido em seis capítulos.
O primeiro capítulo debruça-se sobre o espaço e as circunstâncias, palco das primeiras vivências do nosso homem, o Barrocal Algarvio, Guia e São Bartolomeu de Messines, os seus ascendentes familiares e os verdes anos da sua infância e mocidade. Este enquadramento, apesar de complementar, é imprescindível e indispensável para uma melhor compreensão do carácter de Vítor José Cabrita Neto.
O segundo capítulo deste trabalho centra-se na sua ida para a Universidade, em Lisboa, e na sua actividade no movimento de contestação estudantil à ditadura, na capital, no início da década de 60.
No terceiro, segui o seu percurso em Itália, cuja vivência política e pessoal marcará profundamente o seu futuro, uma vez que foi lá que aderiu ao movimento comunista, no qual manteve notável actividade política.
“Abandonar o casulo de origem para lá longe, «viver com o essencial, recomeçar tudo de novo», como se diz a dado momento, era tudo menos uma escolha simples. Implicava deixar a família, a terra ou o bairro de origem, a segurança material possível, viver por vezes um «processo de desclassificação social» – para passar a viver «às escondidas da sorte».”8
Contamos como, outras vezes, viveu em completa solidão, um pouco à margem da legalidade e sob a ameaça da polícia italiana, dos serviços de emigração e mesmo do longo braço da PIDE.
Os lugares do exílio não foram estâncias de férias, mas territórios instáveis nos quais Vítor Neto conheceu bem os sentimentos e as emoções da vida no exílio. A solidariedade de alguns companheiros, os amores ocasionais, a fé numa justiça histórica, a dimensão da utopia que gerava a esperança, foram os factores que melhor alimentavam o corpo, a alma e a determinação de muitos exilados para prosseguirem.
Nos quarto e quinto capítulos, no seu regresso ao País, já nas asas da liberdade, a narrativa histórica foca-se no seu contributo ao PCP e na implementação das suas políticas, no trabalho de fazer renascer a empresa familiar, Teófilo Fontainhas Neto, SARL, e ainda no serviço que prestou ao País como secretário de estado do Turismo e como deputado da nação.
Por fim, no sexto, explana-se o seu legado intelectual, que se assume como uma visão estratégica e inadiável para o Algarve.
A seu ver, o turismo no Algarve tem de abraçar princípios de sustentabilidade, buscando harmonizar o crescimento económico com a preservação ambiental e o bem-estar das comunidades locais. Para tal, segundo ele, é necessário investir em práticas de turismo responsável, promovendo a conservação dos recursos naturais e respeitando a autenticidade cultural da região.
Ao adoptar uma visão estratégica, o Algarve poderá, simultaneamente, continuar a atrair visitantes, mas também garantir um legado sustentável para as gerações futuras.
A narrativa desta não biografia foi criteriosamente construída, de modo a incluir fontes diversificadas, algumas inéditas, e exemplarmente elucidativas da sua vida, ao longo das várias décadas estudadas.
Na pesquisa, foi feita a selecção bibliográfica, cujo entretecimento se agradece na bibliografia final deste trabalho.
Por ambicionar alcançar um público lato, reduzi, tanto quanto possível, as notas de rodapé, e as citações sem nota correspondem a referências adjacentes ou então a citações do próprio biografado e estão presentes na bibliografia final.
O “Apêndice documental” deste estudo foi criteriosamente construído e seleccionado, constando de seis anexos, exemplarmente elucidativos da vida política e pessoal de Vítor Neto.
Alguns dos textos que aqui se integram foram extraídos do acervo pessoal do biografado e não são apenas relatos. São os fios invisíveis que tecem a tapeçaria da resistência portuguesa no estrangeiro, ecoando a saga daqueles que desafiaram as amarras da ditadura de Salazar e de Marcelo Caetano.
Ao inserir esses textos integralmente no livro do biografado, não apenas os preservo do esquecimento, mas também lhes concedo o merecido protagonismo. São eles as estrelas guias que iluminam o caminho dos investigadores que procuram compreender a complexidade e a coragem de todos os que se opuseram ao regime ditatorial português, e, neste caso, os que lá fora o combateram.
Cabe, ainda, dizer que, em coerência com a defesa da Língua Portuguesa, não adoptei o Acordo Ortográfico de 1990, por o mesmo ser linguisticamente inconsistente e estruturalmente incongruente, empobrecendo a literacia que uma língua deve proporcionar, na plenitude e diversidade, aos seus falantes e utilizadores, pelo que a redacção não está conforme a esse (des)acordo, uma vez que eu e muitos outros autores contestamos (ainda) as suas implicações na destruição da etimologia dos vocábulos.
Abertamente, Vítor Cabrita Neto espelhou-me a sua vida, aspirações e preocupações, vivida entre um regime ditatorial e a democracia.
De facto, pelo seu percurso político, ele é uma figura incontornável na história contemporânea do Algarve, na história da oposição ao Estado Novo e, sobretudo, para os estudos sobre as elites juvenis no pós-guerra, a história do PCP e sobre a história do regime democrático e da sua institucionalização.
Vítor Cabrita Neto foi um verdadeiro cidadão em tempos difíceis.
Como definiu Joaquim Silvestre, ele era um dos que, naqueles tempos, “queriam «endireitar o Mundo», ainda que entortassem as suas vidas pessoais.”
Mais que um escrito histórico, pretendo que a história de vida de Vítor Cabrita Neto o ultrapasse e que seja um percurso que mergulha, simultaneamente, na geografia do tempo, no peso do destino das pessoas e no labirinto da memória, uma revelação do nosso passado recente, que é sempre “uma herança pesada e sublime, porque é o carácter da nossa própria existência.”9
Há que promover a divulgação de Portugueses e de Algarvios exemplares, cujo contributo foi fundamental para que hoje tenhamos a liberdade e os direitos cívicos que todos dizemos querer defender.
O conhecimento de figuras de irrepreensível porte moral e ético, como Vítor Cabrita Neto, cada vez mais raras na esfera pública e política, vai para além da História.
Nos nossos dias, importa compreender e avaliar a importância da sua memória e que inspiração nos dá o seu legado para a construção de projectos futuros.
Maria João Raminhos Duarte